segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

CORPO INACABADO NO TEMPO INACABÁVEL

Igor Fagundes

Debruçados no parapeito das janelas abertas pela morada poética de Fabrício Corsaletti, respondemos, sem hesitação, à paisagem avistada: “A poesia brasileira na atualidade vai muito bem, obrigado”. Em Estudos para o seu corpo, o poeta reúne seus dois primeiros livros publicados (Movediço, 2001; e O Sobrevivente, 2003) e mais dois inéditos (Demolições e Estudos para o seu corpo, este último a batizar todo o volume e feito de um único poema dividido em dezenove partes). A cada obra, são notáveis o amadurecimento e adensamento do trabalho de Corsaletti, como se a voz lírica, sóbria e contida, “estudasse” meticulosamente seu próprio timbre, afinando-o em diferentes tons nas colorações da infância, dos atritos da cidade em fuga ou forjada (“a que não sei como chegar”) e de um corpo concreto ou idealizado, sempre atravessado por outro.


A ambigüidade característica de toda escrita poética começa já no pronome possessivo presente no título Estudos para o seu corpo: este “seu” pode referir-se ao corpo do leitor, ao corpo do próprio autor ou a algum terceiro que será, adiante, no corpo da linguagem, personagem, cenário e enredo. Tratar-se-ia, afinal, da corporeidade feminina, anatomicamente cartografada não pela sensibilidade de um poeta, digamos, masculino, uma vez que, ouvindo Cecília Meirelles e Clarice Lispector, escritor e poeta não têm sexo, ou possuem os dois, o que dá no mesmo, “como se / o sol / fosse / possível / ser dois / sóis”.


Na leitura destes Estudos, o ambíguo “seu”, longe de gerar um problema para a apreensão do sentido do título, tem a felicidade de evocar a desaprendizagem dos limites entre corpos explorada nos poemas, dada a permeabilidade e inacabamento dos tecidos corporais e lingüísticos: ora a misturarem-se a gêneros distintos no mapeamento do sexo oposto (“Amo aquela mulher / desde o momento / em que a vi mijando / descontrolada em pé”), ora a confrontar espaços e temporalidades, como os da provinciana infância (“saía da panela / (...) um cheiro forte / de passado”) reunida aos de uma cidade difusa e fragmentária, factual ou imaginária, ainda ou futuramente presente (“A cidade era maior”).


Arrebatados, por esta mulher-cidade, pelas cidades da mulher desenhada no ritmo entrecortado do amor, quem escreve e quem lê não imitam ou tomam a forma feminina, mas – na memória do que aprendemos com Gilles Deleuze – emitem partículas que entram na zona de vizinhança de uma micro-feminidade, de maneira que possamos produzir, em nós, uma mulher molecular – procedimento não exclusivo do homem, haja vista que a própria mulher como entidade molar teria de tornar-se mulher para que o homem também se torne ou tenha a possibilidade de tornar-se: “entrei na sala / onde você trabalha / sentei / na sua mesa / vi o sol se pôr / do seu ponto / de vista”. Seja em Deleuze, seja em Corsaletti, todos os devires começam e passam pelo devir-mulher na condição de chave para os demais: “essa mulher / (...) é um / corpo / de luz / no centro / do dia”.


Tal desfazimento de contornos, a um só tempo, do substantivo “corpo” (de provisória e mutante substância) e do pronome “seu” (em prol de provisórios e mutantes nomes) inauguraria uma curiosa contradição com outra palavra preciosa no título: “Estudo”. Afinal, se estudar implica um sujeito e um objeto de conhecimento, em se tratando de poesia não podemos supor essa paralisia dicotômica, essa tomada de distância rumo a um esclarecimento. Enquanto o verbo conhecer faz-se pertinente em uma fala científica, representativa, conceitual, a conjugação de um saber dá-se na primeira pessoa do plural de uma poética, porque esta não informa a respeito de um eu ensimesmado e o representa; antes, apresenta-nos, na palavra, o perfume, a cor, a textura, a música e o gosto das coisas dentro e fora de tudo, nada. A poesia encarrega-se de nos aproximar do que supostamente está diante de nós e se nos revela dentro, comungado conosco, transfigurado. A escrita advém do sabor (do saber) dessa experiência, da língua física confundida à língua verbal, a impelir a imaginação criadora despertada pela disputa entre memória e esquecimento, no embaço de sentidos que só poderá ser chamado de “estudo” por ironia do próprio fracasso deste intento. Em Corsaletti, quanto mais se pretende desdobrar o corpo feminino, mais ele se dobra, e tal frustração é a sua maior glória.


A palavra análise, por exemplo, e que significa originalmente desligar, desmanchar, desfazer uma trama, nada tem a ver com a prática do poeta, se dela não se espera o acesso a uma unidade dividida (isto é, perdida), mas a composição de uma liga, de uma mancha e de uma indivisibilidade na qual uma trama não consistirá na soma dos fios nem na sua partição, mas, sobretudo, dos vazios não repartíveis, dos interstícios que possibilitarão mantê-la em aberto, na iminência do inextinguível: como a meninice, a província e “a dor / de ser” nos quais o coração do poeta Fabrício Corsaletti (não) cabe, porque “quer morar em todas as / casas que vê / e imagina”.

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