domingo, 19 de outubro de 2008

CELEBRAÇÃO TELÚRICA DA VIDA

CELEBRAÇÃO TELÚRICA DA VIDA

Igor Fagundes

Em um mundo que naturalizou a invenção ocidental e antropocêntrica da subjetividade e deslocou o sentido da poiesis, originalmente vinculado à dinâmica criativa e impessoal da natureza, para o campo restrito da expressividade humana, o tocante livro de poemas A duna intacta, de Maria Dolores Wanderley, presenteia-nos com uma “telúrica” memória: antes de criador e doador de sentidos, o homem é um doado e criado pelas forças artísticas da inesgotável Terra-Mãe, da qual é feito – feito de humus – e, por isso, como ela, pode ser também gerador e transfigurador de si e das demais “coisas caladas, quietas” a cercá-lo. A arte não tem compromisso com a exteriorização de um dentro, na medida em que este, povoado por tantos foras, se nega na interface das infinitas vozes estrangeiras que o cruzam. Por nos (des)contornarmos porosos e permeáveis a esse mundo aparentemente externo é que podemos devolver, reconfigurado, o vigor dele recebido: na iminência de qualquer extravasar, já terá vazado sempre, sobre e sob nós, a realidade que “convida a ouvir raízes, / folhas, lama // - trabalho do caranguejo”.

A amorosa escritura de Maria Dolores Wanderley dá-se nessa construção dialógica e poética da vida que “pousa cores no jardim” e “dimensiona volumes, texturas”. Como outrora pulsou a Gaia ou a physis na Grécia Arcaica; a Onilé ou Ayê de Ifé, na África; como outrora Eros fez-se nome para a irmanação de todas as coisas e como rezamos, afro-descendentes, o axé que movimenta, aproxima e fertiliza os seres. À semelhança de um Alberto Caeiro que deixas as coisas serem elas mesmas para que se nos revelem sua própria poeticidade, libertas de sentidos e fundamentos que serão sempre nossos e nunca delas, Wanderley parece zelar por este intacto das dunas, de maneira que, intocáveis, permaneçam sempre virgens, isto é, à espera de olhares e dedos e pés que as fecundem, ad infinitum, como que pela vez primeira. Sem a mácula com que os homens roubam da areia o arear, da flor o florir, do mar o... Amar!

O título do livro reúne ainda duas grandes questões que levam as gentes de todas as épocas a perguntar pela gênese e horizonte de tudo o que há: a mudança e a permanência. “Duna” traz a imagem da desfiguração, do devir, do provisório e do mutante, enquanto “intacta” evoca o contraponto do repouso, da plenitude. Na concomitância de sermos outros e os mesmos; de não perdermos a sensação de continuidade sem a qual sequer poderíamos perceber que mudamos, o tempo, preenchendo os espaços da travessia, instaura-se como o grande lugar desta poética que “não tem a precisão / das horas / não segue inexorável / os ponteiros do relógio”; que “muda com as estações (...) // enquanto giramos” e que se vê “gigante pela fresta” aos “49 anos”. Mesmo quando a falar de si, a poeta pede que a natureza – com a qual comunga – fale, mas não para subordiná-la às formas humanas de vê-la e, sim, para que o poema seja visto pelas formas com que a natureza o escreve. Muito mais sincero do que se projetar e se espelhar nas “ondas ressacas maresia / barcos distantes / brisa leve leve” é permitir que estes se projetem e se reflitam no próprio corpo da autora, tornando-o terrosa obra, posto que autores de todo afeto a encorpar/incorporar palavra.

Enquanto boa parte da crítica literária requisita que os poetas cantem o presente e insuflem-se das angústias urbanas, pós-modernas, capitalistas, apocalípticas, Maria Dolores Wanderley ensaia sua plástica música celebratória, mas nem por isso abstém do contemporâneo. Na autofagia da ciência e de suas promessas de progresso, a exploração e o esgotamento da natureza pelo homem, que agora o ameaçam e o castigam, rogam que o barulho e babel das cidades envidraçadas se rendam à escuta de um silêncio no qual “múltiplas janelas se abrem”, embora, hoje, quase afônico, por tanto gritar. E porque gritamos demais e estamos roucos com a esterilidade do falatório, esta poesia reivindica o sussurro, a contenção, a serenidade, a pausa (mesmo quase livre de sinais de pontuação) e a conivência com essa tal voz sem idiomas nem som à qual o homem atual não cede ouvidos. Daí, alarma-nos tanto ter que discorrer sobre exímia poesia de “beleza e fugacidade”, como se roubássemos dela, de seu movimento, o que se nos doa intacto e assim merece ser mantido. Ferimos o calar que pode dizer tão mais nas “veredas percorridas”. E dizemos tão menos do que a alegria do corpo ao saber que, mesmo não flutuando, tem “um chão para pisar” - “agora uma folhagem, um tapete / onde brincamos de descobrir a paisagem”: “tudo é passível de brotos / basta um fio de ternura persistindo”.

SEQÜÊNCIAS DE LUZ SOBRE A PALAVRA

SEQÜÊNCIAS DE LUZ SOBRE A PALAVRA

Igor Fagundes

Aos que insistem em situar o poético como o lugar do idílico, do fora-de-órbita, da fuga a um planeta outro em que não vivemos, o novo livro de Eucanaã Ferraz, Cinemateca, adverte: “O poema ensina a estar de pé. / Fincado no chão, na rua, o verso / não voa, não paira, não levita. // Mão que escreve não sonha / (em verdade, mal pode dormir à luz / das coisas de que se ocupa).”. Inscrevendo-se de olhos bem abertos dentro dos de um leitor boquiaberto, toca nossas retinas uma poética predominantemente plástica, visual e onde até o mais etéreo recebe sua materialidade, para que, à superfície, os mistérios – à semelhança drummondiana de um claro enigma – abdiquem de toda abstração para alarmarem textura, temperatura, luz: “esvaziássemos a atmosfera, / pescando-se no ar como num tanque, / achar-se-iam milhões de seres inexplicáveis // e com eles muitas coisas se explicariam. / Quanto a mim, imagino que / talvez pudesse vê-la, a poesia, / naquele vazio, entre um verso e /// outro, naquela (nesta) rua cintilante, / silenciosa, reta que vai dar fora da folha”.

Diante de uma palavra substantiva, clara, que “ouve com os olhos” e é capaz de afirmar, sem metafísica, que “Deus é o cubo / de açúcar que se dissolve no leite”, nossas sobrancelhas se suspendem ao perceber que o poeta deglutiu bem as lições de um João Cabral, sem que isso queira significar qualquer reprodutibilidade do universo e estilo do pernambucano. As pálpebras arregalam “outro mundo, outra educação / pela pedra”, na qual o eminente aprendiz, a abrir “tudo / em grande angular”, freqüenta muitas escolas – da literatura (pintando o “guarda-chuva” de Bandeira, passeando por Weissmann com Freitas Filho, entre aquarelas de Dostoievski, Camus, Mallarmé, Herberto Helder, Eugénio de Andrade e “bibliófilos” de toda espécie) e da pintura (a escrever Matisse “com a mão, certa, obediente”, sem deixar de abrir estrofe para Mondrian, ou Breton).

O livro seria apenas e extraordinariamente esta aquarela verbal (de muito sol “azul” a avançar “pela boca”, sob um céu “branco” ou “verde-claro” entre “amarelos” e “vermelhos”) se não cantasse também o “só abrir-se / do aberto: ritmo”, cujo “movimento sem fim” conduz os quadros pintados ao cinematógrafo. Tamanho dinamismo, alimentado pela respiração entrecortada das vírgulas, se alcança, sobretudo, mediante o emprego magistral do enjambement, que funciona como espécie de hiato entre os fotogramas e, portanto, uma abertura para que os “tetos” da casa poemática se abram (fazendo-os flertar, inclusive, com a dicção da prosa), de maneira que todos os versos pareçam “mover-se sobre salto”. Há momentos em que o enjambement costura-os não somente dentro de um mesmo poema: chega a propor a continuidade (ou descontinuidade) da versura também entre um poema e outro, ou entre uma seqüência de poema e outra, razão pela qual sempre se nos adianta uma dose de não-dito no adiamento recorrente do término daquilo que se tem a dizer.

Tal costura em moto-contínuo, “distinguindo a linha, o intervalo, / o vão”, remete ao ofício criativo do montador de filmes, de quem Eucanaã Ferraz se sugere irmanado, de modo que a impecável fotografia deste cinema (roteirizado em três seqüências de luz, da mais intensa e diáfana, descendendo à melancólica e a finalizar com alguma próxima do fúnebre), manifeste peso ou leveza, frieza ou calor, mas, essencialmente, a sensação de que tudo está transitivamente vivo na página, a passear, sem sono, pela cidade, pela infância, pelo amor “caindo em admirações tamanhas / que de lá não possa sair”.

O esforço do poeta em manter, graças à arte, a vida acesa com “sucessão de estrelas / em pleno dia claro” transpira em todos nós que sabemos do trabalho de “desfotógrafo” com o qual o tempo nos mira, nos apaga e faz do esquecimento o desautor de cada uma de nossas claridades. Afinal, de cada escrito, diz a voz poética, não restará mais “que a folha livre / de depois do livro, retrato / em branco e branco”. Por isso (e para retomar os tão pertinentes títulos da obra coesa e madura de Eucanaã Ferraz), ensina-nos a estar de pé o desassombro deste “despenhadeiro prazer” de ler e escrever, no qual, dentro de uma cinemateca, o martelo (com ou sem dor) da poesia nos crava e finca no chão da (in)finita rua do mundo.

CRÍTICA ERETA PARA UMA POESIA ERETA

Crítica ereta para uma poesia ereta

Igor Fagundes

... de pau duro a vida vive dentro de mim.

Caio Meira, Entre outros.


À semelhança da Vida que, metendo-se em nós, intrometida em nosso corpo, nos convoca a um daqueles palavrões que exclamam seu impacto, contundência e fecundidade, diríamos: a poesia de Caio Meira é foda! É, literalmente, do caralho! Boa pra cacete! Como ela (e aqui emprego também o sentido, excitante, de comê-la), “escrevo essas palavras de pau duro, na esperança / de encorpá-las ou dar a elas carnadura e / alguma veia inflamada”. Devoro e fertilizo essa poesia na mesma desmedida em que me penetra, pois, em mim, sua glande nos descentra, quando se esperaria ser minha, aqui, a verve rija a engravidá-la.

Neste curto-circuito de falas (ou falos), precipita-se quem julga ser o quarto e ainda inédito poemário de Caio Meira mais um livro entre outros, apressadamente classificado sob o rótulo de literatura erótica ou pornô. Neste invulgar Entre outros, toda evocação priápica parece sublinhar uma escrita que, a todo momento, não se deixa arrefece, baixar a crista, rigorosa e vigorosa no irremediável ofício de adentrar aberturas, as mais estreitas em nós, as (quase) insondáveis, para, paradoxalmente, revirginá-las. Para além dos gêneros masculino ou feminino, o sexo é “da própria vida [que] / me mostre agora a surpresa contida na vida”. Será, ainda, de poesia com poesia, para além dos gêneros literários e onde a prosa e o verso se fundem numa “corda atada latejando / entre a noite e a manhã”. Entre a vida-poesia particular, finita, e outra, impessoal e ilimitada, a qual, na cópula, se torna a mesma – a alteridade que habita, interpela e leva nossa identidade à perda de si, na excentricidade orgasmática e trágica da “gota / que falta ao transbordamento”. No entre a vida-poesia mora, enamorada dos interstícios de uma intimidade que só se empreende na impossibilidade de estar só: realizável apenas no movimento de sua ultrapassagem.

Desde a estréia, com No oco da mão, Caio Meira parece disposto a dar certa continuidade às motivações lexicais, corporais e vitalistas de seus livros, como se a buscar sempre novas posições na cama em que, perdendo-se nas curvas da linguagem, se descobre beijado e abraçado pela carnadura do mundo. O poeta renuncia ao lirismo entendido como “extravasamento” de uma subjetividade ensimesmada para tornar-se e torná-la um lócus de núpcias entre os macro e microcorpos que se cruzam na cidade permeável da derme. Apalpando-se com poros e orifícios, a moldura em que consiste a idéia de sujeito se autonega e, no extrapolar desse quadro onde outrora supomos haver contornos, o verbo poético livra-se da mera masturbação estética para dar voz a diversos pares que nele se profanem ímpares. Se alguma “punheta” há em exercício, diz respeito somente à de uma inominável e gigante vida que nos toca e adensa, como se dela fôssemos o falo, de modo que não balancemos, frígidos, entre suas pernas e possamos, enfim, expelir a beleza que irá restituí-la. A líquida delicadeza do que, a princípio, se derramaria brutal se, no lugar de gratuitos, não fossem preciosos todos os “paus duros” e “bocetas” – de Pandora, de Eva e de quem quer que seja – em Caio Meira.

Esta, a imanência meditativa com a qual o discurso se ergue: manifestar mundo na latência do gozo, cuja iminência se ergue tanto a partir de uma força de dentro quanto de um fora que a força a concretizar-se, pois tudo o que a fluidez interna pretende, em seu vazar, é declarar-se definitivamente fluida e não-interior. Alheia à qualquer dicotomia entre dentro e fora, a corporeidade desta poética infla sua fenomenologia da ereção (título da segunda série de poemas do livro) à condição de lugar ontológico no qual homem e entorno se incluem de maneira irrestrita, estendendo-se a mim – a quem? – “irremediavelmente dissolvido, envolto em apêndices, bocas, línguas que me trilham”, “a agarrar o destino / pela garganta, com todas / aquelas desmedidas que dormiam entre / os influxos nervosos”. Eu – poderei dizer, ainda, eu? – a “ir além de minha / própria tragédia, para que minha música / vá além da música”.

Na assunção do extraordinário no ordinário, do sutil no supostamente grotesco, a obra de Caio Meira prescinde da virtuose das imagens, do malabarismo fônico, da fuga inócua à fantasia ou do apelo ao diáfano para conceber poesia. Contaminar seus versos com “barba por fazer”, “velhos gordos”, “sanduíches gelados”, “lanterna”, “tesoura”, “cartões de crédito”, “tatuagem na virilha”, “piercing”, “toneladas de metal, plástico e parafusos” nada tem de reprodução do senso-comum. Em Entre outros, punge a questão de que “a vida deve, afinal, defender a vida” e cabe à poesia “ir atrás dela, desentocá-la de seus refúgios”, “palmilhar os caminhos que desconheço, espreitando todo deslocamento / súbito”. Se, em dado momento, um verso nos diz que “tudo o que temos cabe numa caixa de sapatos”, o imperativo poético é “despertar / a parte invisível de tudo”, encontrar infinitas caixas dentro desta em que cabemos e não cabemos, para que, com “todas as dores de quem está reaprendendo / a caminhar”, a vida-poesia se adense no ímpeto de uma hora “cavernosa injetada de sangue”: “a vida é dura fora de mim, / a vida é doce dentro de mim, a vida dentro / e fora de mim, no meio do caminho da minha / vida, de pau duro a vida vive dentro de mim”.

ALÉM DA MORTE

ALÉM DA MORTE
Domínio técnico e ímpeto criativo marcam a poética de Ivan Junqueira, em O outro lado

Igor Fagundes

Em O outro lado, décimo primeiro livro de poemas de Ivan Junqueira, o poeta cumpre com o ofício dos grandes artistas: dar continuidade a uma premente questão que atravessa toda uma obra para, dando-lhe os contornos, violar suas molduras. A palavra de Junqueira é esta na qual se imprime a predestinação de quem escreve, em vida, a morte; ou antes, de quem é escrito por ela, tornando-se (como se tornou) imortal.

A própria voz lírica confessa: "O que escrevi foi sempre o mesmo/ poema, e os mesmos são os dedos/ que nele enrolam o novelo/ dos muitos eus em destempero". Porém, ao contrário do que se supõe, não é de Junqueira a inquietante atenção ao mistério da mortalidade. Assumi-la presente em todos é constatá-la pertencente a ninguém: nós quem pertencemos a ela e, por isso, permeia, insolúvel, cada povo e era. Porque os poemas de O outro lado são "a súmula e o sal talvez estritos/ do que somos, tu ou eu, desde o momento/ em que um clarão se fez", sobressalta-nos, no "fundo ambíguo de um espelho", "a sóbria embriaguez de um terceiro" rosto, ou nem-rosto, lançado entre nós e os muitos ivans; entre a luz e a escuridão, o som e o silêncio, Eros e Thanatos, a "alma e os ossos/ do que jaz debaixo e paira acima". Perguntar pela morte é atravessar-nos pelo ardor do sagrado, por um élan desconhecido que, em nossos interstícios, inventa sempre um "outro lado" dentro (e para além) do "mesmo": "compreendi que esse processo/ de sermos outros (e até/ termos em nós outro sexo)/ nada em si tinha de inédito:/ já se lia no evangelho/ de um deus ambíguo e pretérito". E se lia, enfim, em começo, antes de Cristo, entre os gregos que comparecem na (falta de) margem de todo pensar: "a mão que escreve é aquela/ que ergueu um brinde aos féretros/ de uma insepulta Grécia".

Na procura pelo fundamento das coisas, muitos os nomes propagados ao longo da história, na afirmação de uma força inaugural que, tendo a morte como ponto de chegada e partida, animaria a vida em seu durante: do ser em Parmênides ao logos de Heráclito; da idéia de Platão à potência-e-ato de Aristóteles; do Deus cristão ao sujeito moderno - de muitas formas, tudo isso entra, na anamnese poética de Ivan Junqueira, em ebulição, até precipitar, de novo, naquele "rio/ de cujas águas alígeras/ ninguém sai igual a si/ ou àquilo que está vindo/ a ser, mas não é ainda".

Uma vez que "tudo se move" e "esta é a sina/ de todos, este o castigo/ que nos coube, como a Sísifo:/ a de sermos o princípio e o fim, na mesma medida", o homem se pergunta (mediante a arte, a filosofia, a ciência, a religião) sobre o que há de sobreviver sempre ao fluxo de todas essas mudanças: "... as pedras/ me ensinaram que o critério/ do que em tudo permanece/ nunca está nelas, inertes,/ mas nas águas que se mexem/ com vário e distinto aspecto,/ de modo que não repetem/ o que antes foi (e era breve)".

Outrossim, na Metafísica de Aristóteles, flagramos que tanto a poesia quanto a filosofia nascem do espanto, da admiração e, talvez por esse motivo, nos soe tão grega quanto contemporânea a epígrafe de Pessoa na abertura do livro de Junqueira ("Há um poeta em mim que Deus me disse..."), ressoada no primeiro poema da coletânea: "Eu sou apenas um poeta/ a quem Deus deu voz e verso". Reverberando, ali, algo de um vate, de um rapsodo abduzido pelo divino, o poeta, irrequieto, chega mesmo a pôr em dúvida a própria figura - entificada - de um deus "déspota, deposto", no magnífico poema que dá título à sua trama elegíaca: "Diz-me: o que haverá do outro lado?/ A eternidade? Deus? O Hades? Uma luz cega e intolerável? A salvação? Ou não há nada?".

Elogio à vida

Diante de um "céu ao reverso, torto", a poesia filosófica de Ivan Junqueira parece triunfar num pessimismo que também se questiona sobre a fertilidade do "pensamento erradio/ daquela vã filosofia/ que se move em nós, escondida,/ e faz da existência esse enigma/ que é não termos princípio ou fim/ e até mesmo nenhum sentido": "pergunto-me afinal se valeu a pena/ a aposta que fiz no infinito e na beleza,/ em Deus e na eternidade, na poesia/ que me abandona agora à própria sorte/ na extrema fronteira entre a vida e a morte". E é de seu vozerio, "já de morte ferido", que obtemos a resposta de que a arte "não cobiça/ ser laureada ou aplaudida/ por sua exímia alquimia,/ mas tão-só fruir de si/ o prazer de estar viva". Na elegia de Junqueira, um oblíquo elogio à vida sobressai, pois ela é o que, fugindo, incessantemente o persegue nos labirintos da memória que tudo salva e presentifica, na concomitante reversibilidade das forças antagônicas da realidade ("nossa vida, sempre diante/ da morte"; "Não vês que, morto, estou vivendo?").

Preciosamente vago e recorrente no poema "São duas ou três coisas", o pronome pessoal "ela" pode, então, remeter, entre outras interpretações, tanto à morte quanto à vida ("Sei que ela vive no halo de uma vela/ e queima, sem consolo, em minha cela"), pois ambas, em dúplice unidade, se fundem igneamente, consoante escreve "Indagações": "não há vida nem morte, mas apenas/ o sonho de alguém que, numa viagem,/ julgou estar em busca do eterno,/ sem saber que o que nos cabe/ (e o que somos, tão fugazes)/ é, se tanto, uma escassa chama que arde/ e se apaga ao fim da tarde".

Evidência da paradoxal possibilidade de perpetuação do fugaz na experiência vibrante do agora são as muitas passagens que creditam à potência mnemônica o fulgor da criação ante o esquecimento ("Ó rios de minha vida: os que cruzei sem ter visto/ e os que fluem, com mais tinta,/ no pélago das retinas/ de quem agora os recria!"), a possibilidade do sonho que anula distâncias e perdas (conforme o magnífico Não vês, meu pai?) e a imortalidade do ser na impressão, para a posteridade, de uma arte impregnada de personas e narrativas que, também eternas, desfazem, vez por todas, a dicotomia entre ficção e real, mito e verdade: "Hermes", "Apolo", "Lenora", "Píndaro", "Ulisses", "Penélope", "Calipso", "Ogígia", "Odisseu", "Plotino", "Agostinho", "Plínio", "Horácio", "Ovídio", "Virgílio", "Fausto", "Dante", "Cervante", "Dom Quixote", "Baudelaire", "T. S. Eliot" e muitos outros bens poéticos inserem-se no "testamento" do poeta como (co)memoração do "testemunho/ do sangue que (...) se vai embora".

Decerto que as três musas do monte Hélicon consagram a pena de Junqueira: Melete doa-lhe o rigor na variabilidade métrica e fônica; Mnme, o vigor da improvisação imaginal; e Aoide, o canto resultante da mistura entre o domínio técnico e o ímpeto criativo. Nem tudo em Ivan Junqueira "vai, enfim, se despedindo". Enquanto vivo, a potência musal não o abandona no "áspero exercício/ da língua, do ritmo, da rima,/ de tudo a que não renunciam/ a fúria e o som da poesia".

A SAGRAÇÃO DO CAOS

A SAGRAÇÃO DO CAOS

Igor Fagundes

No oracular A infância do centauro, poemário do alagoano-baiano José Inácio Vieira de Melo, um certo Delfos nascido em Olho d'água do Pai Mané adivinha-me no único verso de Quarto da bagunça: "Eu não sei nem por onde começar". Porque todo começo (cosmo) parte sempre de uma "bagunça" (caos) e a ela retorna na intermitência poética da vida, não-saber é o próprio iniciar caótico do verbo que não sabe "ser quase" e jamais se sacia, jamais nos sacia, sedentos incuráveis que somos. Não obstante, as algaravias deste livro-quarto-das-balbúrdias consistem, ao revés, no "registro da fala do silêncio" e levam-me, desde já, ao fracasso de dizê-lo e "dizê-las por inteiro". Afinal, ninguém consegue falar ou escrever sobre o silêncio, uma vez que só é possível falar ou escrever violando-o. Por isso não se sabe nunca, em poesia, "por onde começar": começa-se. E recomeça-se a cada vez, sem chance alguma de chegança. O ansiado "onde" é justamente este "não sei" a partir do qual emerge e imerge todo - poético - saber; todo sabor que intenta saturar-se de palavras quando "um silêncio de lá, de longe - das plagas interiores" as "abrasa" e "as queima antes de serem".

À semelhança de um "escarlate" que viaja "por todo o Cosmo em busca de uma resposta" e transita "em todas as partes que estão além das partes todas", adentro este quarto da bagunça "como quem entra num bar" e "sai bêbado caindo pela falta de chão". Confessar que "em minha mão pulsa o nó do espanto" é reconhecer, na desordem, o que nela se verte em seu próprio elogio: os minuciosos "segredos da poeira" a "andar para cima e para baixo"; o desejo de "beijar minha sombra", de assumir "todas as formas" para "amanhã ser informe" e especular que "somente os olhos dizem/ o que as palavras sonham" no instante em que o poeta, o leitor, um poeta-leitor se reconhece (ou se desconhece) perdido entre papéis misturados, canetas sem tinta, bilhetes rasgados, gavetas e armários abertos, vestes sem cabides, sapatos sem cadarços, cigarros sem cinzeiros, janelas emperradas, chaves sem baús, cofres violados e outros órfãos de senhas. Vem "do caos primordial" a poesia e, em Vieira de Melo, tal mitofania se faz tema ao percorrer "as searas da escuridão" e ver "o mundo pelos olhos da esfinge". Não lhe cabe decifrar - arrumar o "quarto" - e, sim, perpetuar-se "enigma", "um lugar/ onde os nossos mistérios possam descansar". Onde possamos transgredir o que outrora afirmamos, já que nem os olhos são capazes de dizer o sonhado pelos nomes. Silenciosas, as retinas talvez só gritem o que nelas se impronuncia: nunca acham o que procuram e o que nos procura se diz tão-somente em oráculo sob vendas: "Eu só acredito nas coisas que não vejo".

Esta, a crença da flecha erguida pelo centauro: ver o invisível, tanger o intangível, na certeza de que o azul do céu se tinge do fato de que ele não é céu nem azul; de que, indiscernível das patas, jamais segue longe, acima, mas como o imanente incolor que doa todas as possibilidades de cor e as converge na aquarela alquímica da vida: "vento, fogo, terra e água/ tudo uma coisa só". Com um quê de Empédocles e outro de Moisés, a página de José Inácio Vieira de Melo prossegue qual um Mar Vermelho em pleno Egeu, e por onde também deságuam os rios áridos ou a seca lacrimosa de um nordestino - humano - sertão.

A infância do centauro não se anuncia na condição de etapa existencial ora ultrapassada. Na medida em que não cessamos de aprender a falar, a pensar, a descobrir, amanhecemos, a cada amanhã, infantes na "sagração dos mitos". Bíblicos ou pré-socráticos em Vieira de Melo, ou nem isso, para além disso, pós-melos, posto que "não medem o tempo" e se apossam, como "herança" e "testamento", do "buraco, o vazio" exímio no "meio do caminho" de nosso presente. E é buscando, de dentro desse abismo, aquilo que será, paradoxalmente, sua ponte, que os desígnios de um Delfos Vieira de Melo fazem-nos sentir tamanha saudade dos lugares em que nunca (mas sempre) estivemos.