quarta-feira, 27 de maio de 2009

POÉTICA DO PALAVRÃO

POÉTICA DO PALAVRÃO:

CORPO E AMOR NA TERCEIRA MARGEM DA PALAVRA

(comunicação apresentada no debate "O corpo no pensamento poético", III Feira Poética da UFRJ - Faculdade de Dança/Fórum de Ciência e Cultura)

Igor Fagundes

“A corporeidade corresponde à sacralidade do profano.”
Diego Braga, A poética do mito.

“É a fala cotidiana que consiste num poema esquecido
e desgastado, que quase não mais ressoa.”
Martin Heidegger, A caminho da linguagem.

“Filhos da puta!”
Vida que pariu.


(1.) Uma palavra quer ganhar corpo. Um corpo quer ganhar: palavra. Para não se perder. Para se manter, se reter como corpo – isto que não se detém. Tudo o que se encorpa ama perder corpo é o aforisma de outrora agora. A plenitude de um corpo: deixar de sê-lo. Ultrapassar-se, ultrapassá-lo. Trair o que no corpo é corpo culminaria em sua e nossa maior fidelidade – a possibilidade de continuarmos a vir. A vir a ser corpo. A vir a ser. A ser. Simplesmente assim, no infinitivindo.


A palavra salvaguarda os corpos, mas não na condição de outro corpo. Do contrário, qual a palavra para este suposto corpo chamado palavra? Qual a palavra que nomearia esta “coisa” nomeadora de todas as coisas? Silêncio? Mas silêncio pode ser palavra?


A palavra silêncio: aquela que se nega – como palavra, como nomear de coisa – para ser o nome de nenhuma. Deixando de ser um nome, deixa que os nomes sejam. Silêncio, a palavra que morre, de amor por todas. Ainda sem corpo, nem palavra, o silêncio vibra em todas as palavras e corpos. Tudo o que vem à palavra ama silêncio. Uma palavra só se cumpre quando deixa de ser a promessa de onde ela sempre recomeça, isto é, quando se pronuncia, mas na medida em que, no seu anúncio, se renuncie e se resguarde naquilo que veio e vem a guardar, a anunciar – a cumprir. A palavra, um cumprimento, a saudação. Ela estende as mãos ao ser, dá-lhe boas-vindas.


O fim da palavra – o instante em que ela silencia – é, na verdade, o seu princípio. Cumprida, deixa que a realidade se conserve comprida, "larga, de não se poder ver a forma de outra beira". Mas, eclodindo da falta de si, este corpo, anônimo e silencioso, clama novamente por nome e voz. Novamente – mais uma vez, na vez que perdura, permanece. Novamente – numa vez nova, na que cuida da mudança. Um corpo, mais uma vez, permanecendo, pede palavra; numa vez nova, mudando, pede silêncio.


Não é assim quando batizamos nossos filhos, gerados no instante em que dois corpos (seus pais) se abriram e se abrem – se traem como corpos – para manterem-se (2.) fiéis ao amor que os une, isto é, para não se manterem, em nome do que se verte, transverte, vaza, extrapola? Em nome do que os mantém como isto que não se mantém. Em nome de um nome, uma vez que a palavra envolve de tal maneira o que vem à presença, que ela pode ser, ainda que fugidia, uma presença. Não nos apresentamos, assim, emersos e imersos do e no amor desses corpos pai e mãe que, perdendo-se, se ganham para nos ganhar? Para ganharmos a abertura que nos abriu e nos abre? Somos, como filhos, como ímpares, a perda e o ganho de um par de corpos que, em si mesmos, já são perda e ganho de milhões de outros, intracorpos, intercorpos, corpúsculos, microcorpos e/ou nem corpos – vazio entre os fios – na rede da qual nos estendemos enredo. Tudo o que ganha laço ama perder laços. Tudo o que se enlaça ama ser livre. Amar: ser livre, graças aos laços. Amar não é ser livre apesar dos laços. Laços de amor serão pesares? Em sua leveza, amar se conjuga no livre-aberto para todo laço. Enlaçados pela abertura, o amor só pesa se, trazendo-nos à terra, permitir-nos descer através dela (e ela subir-nos, florir em nós, por nós), roubando-nos seu e nosso limite. Abismando-nos, o amor só pesa se, pondo-nos os pés no chão, for amor-que-nasce-do-pé: amor de pé, dos pés-à-cabeça, de ponta-à-cabeça. De cabeça-para-baixo, amor-que-perde-chão. Amar: ganhar corpo (chão), perdendo-o. O aforisma de outrora agora ainda ressoa: Tudo o que funda ama perder fundamento. O que ama funda tudo o que fundamento perder. Perder fundamento ama tudo o que funda. Fundamento ama perder o que funda tudo. Daí não sabermos o que é o amor, senão sendo, dele, os amantes. Só nomeamos – e nomeamos amor – como resposta a um arrebatamento, o arrebatamento é a resposta, a um mútuo pertencimento, quando incorporamos aquilo a que já estamos incorporados.


Ao pôr-se sobre e sob nosso corpo, este que nos interpela impele-nos a parir da pele um: Caraca! (3.) Prenhe de mundo, a pele se preenche de caracas. Caraca, a corruptela de “craco”, artrópode que ama cascos de barcos. Caraca, a secreção nasal – corporal – ressequida. Caraca, o próprio falo, introjetado. Caraca exclama o estrangeiro que em nós se fez íntimo; a intimidade repleta de estranheza; a vida impessoal e indistinta acumulada – se distinguindo em pessoa – em nossas dobras. A realidade apegada, colada, encardida desenha mundo na derme e ele se pronuncia: Caraca! Ou, na força violadora de nossa castidade e tão fecundante: Cacete! À semelhança de um “caraca!”, o real se metendo em nós. Muito metido, intrometido, o real: rouba-nos a pureza, a virgindade, o intocado. Estamos nus, em verdade, quando completamente vestidos por ele. Vestir a realidade que nos veste – viver a experiência da linguagem.


(4.) Caralho! No palavrão, o cumprimento da palavra é o que dissemos da saudação a uma coisa em seu com(...)pri(...)men(...)to. Realmente sem comprimentos e sem cessar nunca de cumprir-se, a coisa ganha medida na voz e, como voz que se lhe empresta sentido, ela fica comprida – para além das medidas que jamais teve ou terá – logo que cumprido o silêncio. Pendente na linguagem, a realidade comprimida, rarefaz-se. Rara, faz-se. Contraída, relaxa – na voz. Espremidos na e pela realidade (posto que ela não cabe em nós e posto que propriamente a somos – propriamente somos –, não cabemos em nós; não temos cabimento!), sofremos o tranco, a cacetada, a secreção, a caraca, o craco em nosso barco e somos levados a agir. Levados, somos. Somos muito levados! Muito dados, muito oferecidos. No palavrão, a vida amarrada se liberta: Puta-vida-que-nos-pariu! Vida-puta-que-parimos!


(5.) Palavra que se preze, que se queira palavrão, há de ser filha da puta – desta vida que dá pra todo mundo. Moradora da esquina, decotada, entreaberta, seminua, vestida, travestida, travesti, sem gênero-coisa-nenhuma. Não façamos gênero com a realidade nua e crua. Não a generalizemos, embora palavra mui genérica. Palavra que anda por aí, por aqui, pela boca de Matilde, na língua do povo, palavra na ponta da língua, que vive da rua, quase morre indigente, (re)nascendo quase muda. Vida, realidade: palavras putas a nos deixar (tipo assim: não façamos tipo!) putos, mudos. Sem pa-la-vr-as. É pagar pra ver. Ainda que de graça, a vida – graciosa, engraçadinha, desgraçada – nos é muito cara. Façamos gracinhas e veremos. “Vai ter que rebolar, moço!”, ela avisa. E dan-ça-mos.


A dança da realidade, na qualidade de corpo, não se deixa contornar. Um corpo sem contorno não pode ser, sequer, corpo. Por esse motivo, não damos (a) conta da vida. Ela é foda, insaciável, quer sempre mais. Seguimos aquém do que poderíamos/poderemos vir a ser e a (não) dar conta. Perdemos a conta de quantas vezes fomos comidos por essa coisa de tamanho cum(com)primento. Pelo imensurável dote da realidade. Existir não é moleza não. A vida nos dá um duro danado: que grosseria, realidade, dá para ser mais fina?


Talvez, tudo isso não passe de um sarro, mas, de fato, palavrão é vida tirando um sarro. Palavra-vida nos sarrando, roçando, depois de termos sido chamados à “hora-do-vamo-vê” por uma realidade, entre quatro paredes, sem depois nem antes, nem paredes. O número “quatro” é coisa nossa, que somos tão quadradões. Na real, não há quadrados na natureza, quadriláteros perfeitos – sequer quadriláteros, linhas retas, lados iguais... Sequer lados... Sequer iguais... Embora isto nos pareça bastante concreto: ficar de quatro com a realidade. Os pés e os joelhos e as mãos sobre uma base. Se não tivermos uma base, a gente não aguenta! Sobre (sob) o amor, assim escrevemos: de pés no chão, o amor-não-dá-pé, este amor-que-perde-o-chão. O amor, nossa (perda de) base?! O palavrão, no fundo, tão amoroso...

Fodeu! Quem fodeu? Quem foi fodido? (6.) Na interjeição, nada sabemos sobre sujeições: quem age e quem é coagido. Sabemos nada. O que é nada, o que não é não pode agir, mas age (coage) como a possibilidade de toda ação. Nesse sentido, quem ou quê age e coage é ele, mais uma vez, numa vez nova, o silêncio. Em silêncio permanece o sujeito e o objeto no inter da interjeição: Fodeu! A gente nunca exclama: Fodi! Na variante “estamos fodidos”, o agente da passiva gramatical se esconde junto ao sujeito oculto. A gente está sempre fodido por. O susto se sustém a partir da falta de uma sustentação. Que se foda!


O silenciar dos sujeitos permite o urro, o grito, o gemido. Nessa pista, o palavrão, por sua vez, pediria permissão à palavra qualquer – à palavrinha, à palavra que só serve para – no incurso de atingir a nobreza do silêncio que o autorizou. Para ser permitido, portanto, o palavrão precisa permitir, por ele, a passagem do silêncio. Uma palavra no aumentativo, um palavra com “P” maiúsculo – uma palavra com “P” de pau duro, uma palavra com “P” de poesia – não pode consistir em qualquer palavra. Tem que ser foda, tem que ter pegada. O que, hoje, chamam por pegador não seria o garanhão? Assim somos angariados, pegos pela vida e pelo poético. Um bom poema se garante, porque pego pela pegada da vida, pega geral. Na cama do poema, é a realidade que, na penumbra, nos pega (nos come, come geral) entre lençóis. (7.) Em núpcias eternas, nós de quatro, com cara de: cuzão.


Na fala chula, grotesca (e grotta tem bastante a ver com buraco, com o cavernoso, com o abismal), cuzão é aquele que fica ou ficou sem saber o que fazer: “sei que nada sei, sabecoé?”. Nomeamos, no português ignorante (no português sábio), indivíduo cuzão o que se abriu e se abre para viver a ironia dessa maiêutica (ma... o quê?). Na aporia em que consiste ser cuzão, necessário coragem. Na hora H, na hora da verdade, nos borramos todos, somos muito cagões, fugimos, enquanto ela – o que nos foge, a verdade, que é fuga – caga pra gente!


Cuzão se oferta como imagem poética a dizer do quanto viver é, em seu ontológico arreganhar, oferta. Na procura por algo que se oferte ao que se oferta como procura de algo, a angústia (a denúncia da falta de algo diante do sem-qual, no intransitivo, só se procura). Cuzão diz daquele indivíduo que se entregou (“Ok, você venceu! Amarelei!”) e deixou-se atravessar. Merda! – alguma coisa aconteceu, escapando ao nosso controle. Não podemos prever a hora que vem a... Merda! E há ainda quem a deseje ao outro. Abundante, a merda aduba! A merda fertiliza. No teatro, os atores fertilizam-se uns aos outros, desejando merda a todos. Um desses que, numa cagada, conseguiram viver de arte, Íon, deparou com Sócrates e, diante do mestre de Platão, ficou com cara de: cuzão. Sócrates vivia dando ideia nas pessoas, mas sabia que os artistas estavam na merda e isso, divinamente, lhes fugia ao controle: “Não, Íon, tu não és um merda (um técnico). A merda é dos deuses e, sem que saibas, desfeito nela (entusiasmado), as palavras dos deuses te abundam e agora tornam fértil (adubam) minha terra!”. Daí que, no entusiasmo, fazer merda é fazer algo sem raciocinar.


Com fraldas, bebês, graças aos deuses, não raciocinam; contudo, pensam: neles a linguagem dá o ar de sua graça. No franzir da testa, no ensaiar da primeira rua, na hora do pacto com a mãe-terra antes mesmo do parto, experienciam vida e morte, movimento e repouso, se não cessam de (8.) nascer no agora que Já é! Demorô! Quando vem, o futuro se presenta e se despede na exclamação: “Fui!”. Este agora entre passado e futuro, é, na coincidência de ambos, nada entre passado e futuro. Sendo nada, o agora é sem limites, infinito. Tudo o que vem à presença ama se ausentar. Tudo o que já é demorô (partiu, brow? Fui! É nós!). Ausentando-nos, podemos demorar, morar(-nos) e sermos próprios porque presentes de e do amor. No colo da mãe, da terra-mãe, nosso choro, nossa gritaria, nosso esperneio realizam o palavrão que ainda não aprendemos. (9.) O corpo é o nosso grande palavrão.


Decerto, um palavrão grande não passa de uma redundância, se na palavra palavrão já a temos em aumentativo. Qual a grandeza da palavra? Dar nome ao que, antes, não o tinha e que, ganhando-o, pôde passar a ser, sem que tenha perdido a passagem, o passageiro e o próximo passo: sem que signifique deixar de vir a ser. O extenso-intenso-tenso-teso da palavra é gozar em nós. Lambuzados de caminhos, o orgasmo da palavra ereta é o próprio da palavra orgasmo: ao ganhar outro corpo, perder-se. (10.) Pequena morte, um palavrão é, afinal, grande vida. Palavra que precisa caber o impreciso da vida; que precisa ser infinita, porque precisamente imprecisa. Palavra de máxima extensão e de máxima profundidade, a fim de que nela caiba tudo que (a)parece (não) caber na gente. Vazia, a palavra – do vazio. Foda, essa palavra! Ela arrasa. Não passamos rasos por ela. A grande vida, fecundando, arrasa, nos mata, se morre, para ser outra e outros. Querendo respirar, a vida nos deixa sempre no vácuo.


Por tornarem público o que segue privado; por todo o seu strip-tease, os palavrões são temerosos, como se tementes a um deus – isto que se mostra, escondendo-se. (11.) Os palavrões apresentam o inapresentável como o inapresentável e, certamente por essa motivação, a maioria (senão a totalidade) deles abarca o que, na superfície do corpo, habitualmente, não se mostra: nádegas e genitália. Ambas só se expõem como liminaridades, espaços de passagem recuando em nome do avançar de um lugar, o de encontro, no qual a aparência – o que vem a aparecer, a se mostrar – se revela o essencial, a verdade (o desvelo que vive do próprio véu). Qualquer desencobrir do corpo na voz do palavrão só o faz para devolver ao encobrimento o que lhe é próprio. Por isso, o palavrão precisa chocar. E, antes de tudo, como palavra, ser chocado. “Eu choco as palavras”, declarou um divino escritor mineiro, que comia quieto, baldo de inventar “palavrões”. O palavrão – palavra do sexo, palavra que tem nádegas a declarar – revela, nonada, a intimidade, sem-lugar, do tamanho do mundo, tão estranha, como aquilo que justamente lhe confere a perpétua estranheza: o fato de que o íntimo só o será se assim se dispor na qualidade do que não se dispõe nem se expõe, não se declara, não se dá a ver porque, tal a linha do horizonte, sempre adiante, não é. O palavrão, pois, não desvenda, antes nos venda para vermos o sagrado, este foragido do corpo no corpo. Como assim?! O fora agindo no dentro?


Diante dessa palavra to dentro, to fora, penetrada, penetrante, vigorosa, quem deveria pedir permissão para pronunciar-se seria a palavra pequena, a palavra miúda, amolecida, impotente, infértil, brochada, brochante. Se o palavrão pede realmente alguma permissão para, a um só tempo, permitir silêncio (o sagrado), o faz sem pedir licença. Do contrário, não seria palavrão. Não pedir licença para acontecer faz do palavrão um acontecimento. Uma palavra nobre não pede licença! Somente a tudo e todos pede licença a palavra serva, a palavra servil, instrumental, utilitária. (12.) O palavrão, a palavra de grandeza “sai entrando”. Não bate à porta, não toca a campainha. O palavrão nada sabe de espera se, nele, a vida já o atendeu e o atende prontamente. Esta, a voragem da realidade: ela sai entrando. Sair entrando?! Se sai, não entra! Entrar é sair?! A realidade não nos diz “estou aqui”, como se, em algum momento, estivéssemos fora daqui e estivéssemos fora dela. Não poderíamos sequer julgar algo como irreal ou surreal, se não estivesse ele, o real, na raiz, no radical. Porém, na radicalidade, não há raiz para o real e daí se desdobra nossa busca angustiada por ele e por alguma. Quando, tão enraizados, percebemos que tais raízes não chegam à parte alguma, chegam a nenhuma parte, ou seja, não chegam, a gente grita: “Chega! Basta!”, como se pedíssemos para algum deus chegar e gritar e bastar. Mas (13.) o deus já nos havia e sempre terá chegado, ganhado voz, como interjeição, nesse arrebatamento. Ainda assim, quando não o bastante, soltamos um palavrão (soltamos o real, libertamo-lo de suas amarras, libertamos o deus de sua compreensão como raiz para ele chegar sem nunca ter partido na palavra vazia) e, ficamos, no popular, bolados, a saber, lançados, porque o originário de bola (de ballet, de bailar, de ball) é ballein (do grego): lançar. Em todo diálogo, um sentido se lança – se embola, se bola, alguém profere um: bolei! – na muleta interrogativa inscrita ao fim de uma afirmação: (14.) tá ligado? O brother quer se manter e nos manter ligados (irmãos). Manter a liga é ouvir o légo, palavrão grego primo do logos, a linguagem-mãe da vida. Filhos dela, somos todos brothers, não é, parceiro? De difícil tradução, o logos, porque ele é o próprio traduzir-se. Como corpo, o logos é não-sei-o-quê se diz. O palavrão, por excelência. Aquilo que se ouve como reunião, conjunção e conjugação. Por não vivermos em monólogo e, sim, em diálogo, em dinâmica conjugal – atestada pelo próprio sexo e sexualidade dos palavrões – insistimos: fodeu! Algo foi ligado. Algo fode, algo é fodido. A linguagem fala, e fala não-sei-o-quê até que arrisquemos saber o quê no sabor de uma língua. “Tamo” ligado, brow. “Os outro é” tudo alemão. O estrangeiro, o outro, o alemão, o que não fala a nossa língua. O da língua esquisita. Também, o que não entendemos é grego. A gente não se entende! Nós e os outros, gregos somos todos, e tudo-é-um. Tá tudo dominado.


Outra palavra grega para esta dinâmica de ligas, brothers, parceiros e corporeidades chama-se Eros. No pensamento de Orfeu, Eros – a força de reunião de todos os seres – teria nascido do Ovo Primordial (o Caos), engendrado pela Noite e cujas metades se teriam separado, dando origem à Terra e ao Céu. Eros leva as coisas a se juntarem, criando, entre cosmos e caos, vida. Porque Eros é sempre Eros de Thanatos, sempre Eros do Caos, (15.) a realidade está sempre de caos-caô com a nossa cara. "Deixa de caô, realidade!". Mas ela está sempre nos zoando, nos e se caotizando, nos e se bagunçando. "Na moral, tá-de-sacanagem com a nossa cara! Sem moral, descarada, a realidade vive de caô, da falta de uma cara, de vergonha na cara (a realidade não tem vergonha de não ter uma cara). Babacas (idiotés é o palavrão grego), quebramos a cara quando a realidade dá as caras: Tudo o que dá na cara ama quebrar a cara – uma tradução malcriada para o aforisma de outrora agora. E, assim, quereremos refazer o quebra-cabeça, deixar a cara do real certinha. Imaginá-lo todo arrumadinho, engomadinho. Vamos lá, babar seu ovo! Babar seu Ovo Primordial. Puxar seu saco; pois, afinal, a gente só puxa o saco do que está acima de nós (por isso, os deuses devem estar de saco cheio?!), muito embora o saco esteja embaixo de nós (os deuses, por baixo, por dentro...). Por cima e por baixo, além e aquém, dentro e fora, que porra de realidade é essa? Taumadzein é o palavrão grego para esta porrada. A gente é pela-saco dos gregos, deste estrangeiro que somos (deste papo de que somos e não somos). A gente quer ser filósofo, cientista, tirar os pêlos e a pele do real. Deixá-lo depilado, lisinho, bonitinho, organizado. Desnudo. A gente quer deixar o ovo do real à mostra, removendo-lhe... a pentelheira! (16.) Queremos saber do ovo de onde nos vem Eros. De onde nos vêm o amor, o corpo e a palavra. No fundo, a gente quer ser poeta: palavra de amor, encorpada.


(17.) Homens de palavrão são eles, os poetas. Homens que foram pegos e têm pegada. Homens que tão ligados, tá ligado? Nem filósofos, nem cientistas. Do real, poetas não rasgam seda: sabem que, se a rasgarem, perderão justamente o precioso. Não rasgar a seda, não analisar o real, não o dividir em partes, não o desmanchar, perder o seu próprio, embora rasgados por um deus (pela realidade). (18.) Assim os poetas não babam o ovo dos deuses. Eles são a baba do ovo. O que no gozo se goza. O que na vertência se verte. Porra! – o palavrão desse espasmo. Esse poeta é bom pra cacete. O que nos versos se esporra? O que na arte se esporra? Poiesis é a palavra grega de grandeza para o esporrar (criar) da vida a partir da morte. E vice-versa, pois o orgasmo é sempre esporro de morte a partir (e no partir) da vida. O esporrar do movimento a partir do repouso e vice-versa. Há que se ter o vice-versa. Há que se ter a reciprocidade. Do contrário, não haveria Eros. Não haveria erotismo. Nem palavra. Nem palavrão. Nem porra, porra!

(19.) Esta é a rapidinha que deve durar: na memória de que a vida é esse grande erotismo, essa grande interface, a poesia dá-se no entre, enquanto amor (corpo). Poiesis, o palavrão para essa transitividade do corpo. Assim, o poético, como a experiência do extraordinário no ordinário, é palavrão, se finalmente entendermos palavrão profanamente e entendermos o profano não como o inverso do sagrado, mas na qualidade daquilo que se dá em sua presença e/ou na sua direção[1]. Quando exclamamos um “Caralho!”, estamos, na verdade, sofrendo um: "Meu Deus! Oh, meu pai! Minha Nossa Senhora! Misericórdia!". Por esse motivo, o palavrão não é palavra que falte com o respeito. Palavrão não apenas exige respeito como vige em respeito ao que precede e ultrapassa toda palavra, morando nos hiatos, nas vírgulas, nas pausas, nas interrogações, exclamações e reticências; pontuando, sem fim, o pensamento.


Não à toa, (20.) o deus grego da linguagem, Hermes, o desbocado?[2]. Perdendo sua boca para que, em seu lugar, (se) abra a boca dos deuses e estes se pronunciem, Hermes é um bocado dos deuses. Deus da liga, tá ligado? Das encruzilhadas, do entre. No falo (na fala) à mostra de Hermes, o palavrão é, de fato, no corpo; o corpo-palavrão entrega-nos a porra da linguagem: os gametas da vida desde a incomensurabilidade da morte, na fluidez fertilizante de tudo o que se encorpa e ama se perder...

Vem à palavra e ama silêncio.
À presença no amor de ausentar-se.
O que dá na cara ama quebrar a cara.

Physis philei kriptestai.


Heráclito era brother bom de palavrões. Nomes como logos, aletheia, physis faziam parte do cotidiano de todos os gregos. Antes de incorporados por alguma filosofia, não correspondiam (e ainda não correspondem) a conceitos. Trazem consigo a força da palavra encorpada, e somente. E tanto. Homem de pouco, mas contundente dizer, o discreto de Éfeso tava ligado. No ser: no on (o grego e, putz!, o inglês?!). Mesmo ausente, ocupado, offline, Heráclito, já globalizado, se mantinha on e se conectava com o que o visitasse em seu simples casebre: “Entre, aqui também mora o extraordinário”.


[1] O palavrão latino profanus não se opõe ao sacer. A associação do profano ao sacrílego, ao pecaminoso é posterior e desencadeada pelo pensamento cristão. O próprio verbo profanare – consagrar alguma coisa aos deuses, oferecer aos deuses – já nos abre uma senda para compreender a profanação de que tratam a poesia e o palavrão. O profano diz do que está aberto ao sagrado. Estar em nome, em prol do fanus, do fantástico, do epifânico constitui o que ouvimos e libertamos em todo palavrão. O palavrão e a poesia (o palavrão que é poesia e assumindo também que a verdadeira poesia é sempre um palavrão) são a marca, a mácula, o sinal de oferta ao sagrado, a esse silêncio que entra em trânsito para ser tudo e se dizer palavra. Profanar, poetar, palavrear, então, se dariam como movimento em direção ao sagrado ou direcionados por ele, não para aniquilá-lo ou destruí-lo, mas para enaltecê-lo na referência do encontro.


[3] Na mitopoética nagô, de língua iorubá, Exu nomeia o orixá da linguagem. Exu, como o sagrado mito do humano, é o profano – o sagrado no e do próprio homem que mora na linguagem. Homem das ruas, homens das putas. Homens-deuses também de pau duro, a fazer com que a realidade perdure, em nós, intrometida. Exu, o esporrento, o gozador, arredio que sai por aí metendo o pau, dando esporro em geral, é o orixá responsável pela circulação do axé em nossas veias. O axé, palavra iorubana para o impulsionar de todo movimento, para o vigor do sangue circulante, para a combustão do corpo. Sim! Todo Exu é sangue-bom. Amor: Axé: Eros: Exu/Onilé: Hermes/Gaia.

sexta-feira, 10 de abril de 2009

CORPO INACABADO

Debruçados no parapeito das janelas abertas pela morada poética de Fabrício Corsaletti, respondemos, sem hesitação, à paisagem avistada: “A poesia brasileira vai muito bem, obrigado”. Em Estudos para o seu corpo, o poeta reúne seus dois primeiros livros publicados (Movediço, 2001; e O Sobrevivente, 2003) e mais dois inéditos (Demolições e Estudos para o seu corpo, este último a batizar todo o volume e feito de um único poema dividido em dezenove partes). A cada obra, são notáveis o amadurecimento e adensamento do trabalho de Corsaletti, como se a voz lírica, sóbria e contida, “estudasse” meticulosamente seu próprio timbre, afinando-o em diferentes tons nas colorações da infância, dos atritos da cidade em fuga ou forjada (“a que não sei como chegar”) e de um corpo concreto ou idealizado, sempre atravessado por outro.

A ambigüidade característica de toda escrita poética começa já no pronome possessivo presente no título Estudos para o seu corpo: este “seu” pode referir-se ao corpo do leitor, ao corpo do próprio autor ou algum terceiro que será, adiante, no corpo da linguagem, personagem, cenário e enredo. Tratar-se-ia, afinal, da corporeidade feminina, anatomicamente cartografada não pela sensibilidade de um poeta, digamos, masculino, uma vez que, ouvindo Cecília Meirelles e Clarice Lispector, escritor e poeta não têm sexo, ou possuem os dois, o que dá no mesmo, “como se / o sol / fosse / possível / ser dois / sóis”.

Na leitura destes Estudos, o ambíguo “seu”, longe de gerar um problema para a apreensão do sentido do título, tem a felicidade de evocar a desaprendizagem dos limites entre corpos explorada nos poemas, dada a permeabilidade e inacabamento dos tecidos corporais e lingüísticos: ora a misturarem-se a gêneros distintos no mapeamento do sexo oposto (“Amo aquela mulher / desde o momento / em que a vi mijando / descontrolada em pé”), ora a confrontar espaços e temporalidades, como os da provinciana infância (“saía da panela / (...) um cheiro forte / de passado”) reunida aos de uma cidade difusa e fragmentária, factual ou imaginária, ainda ou futuramente presente (“A cidade era maior”).

Arrebatados, por esta mulher-cidade, pelas cidades da mulher desenhada no ritmo entrecortado do amor, quem escreve e quem lê não imitam ou tomam a forma feminina, mas – na memória do que aprendemos com Gilles Deleuze – emitem partículas que entram na zona de vizinhança de uma micro-feminidade, de maneira que possamos produzir, em nós, uma mulher molecular – procedimento não exclusivo do homem, haja vista que a própria mulher como entidade molar teria de tornar-se mulher para que o homem também se torne ou tenha a possibilidade de tornar-se: “entrei na sala / onde você trabalha / sentei / na sua mesa / vi o sol se pôr / do seu ponto / de vista”. Seja em Deleuze, seja em Corsaletti, todos os devires começam e passam pelo devir-mulher na condição de chave para os demais: “essa mulher / (...) é um / corpo / de luz / no centro / do dia”.

Tal desfazimento de contornos, a um só tempo, do substantivo “corpo” (de provisória e mutante substância) e do pronome “seu” (em prol de provisórios e mutantes nomes) inauguraria uma curiosa contradição com outra palavra preciosa no título: “Estudo”. Afinal, se estudar implica um sujeito e um objeto de conhecimento, em se tratando de poesia não podemos supor essa paralisia dicotômica, essa tomada de distância rumo a um esclarecimento. Enquanto o verbo conhecer faz-se pertinente em uma fala científica, representativa, conceitual, a conjugação de um saber dá-se na primeira pessoa do plural de uma poética, porque esta não informa a respeito de um eu ensimesmado e o representa; antes, apresenta-nos, na palavra, o perfume, a cor, a textura, a música e o gosto das coisas dentro e fora de tudo, nada. A poesia encarrega-se de nos aproximar do que supostamente está diante de nós e se nos revela dentro, comungado conosco, transfigurado. A escrita advém do sabor (do saber) dessa experiência, da língua física confundida à língua verbal, a impelir a imaginação criadora despertada pela disputa entre memória e esquecimento, no embaço de sentidos que só poderá ser chamado de “estudo” por ironia do próprio fracasso deste intento. Em Corsaletti, quanto mais se pretende desdobrar o corpo feminino, mais ele se dobra, e tal frustração é a sua maior glória.

A palavra análise, por exemplo, e que significa originalmente desligar, desmanchar, desfazer uma trama, nada tem a ver com a prática do poeta, se dela não se espera o acesso a uma unidade dividida (isto é, perdida), mas a composição de uma liga, de uma mancha e de uma indivisibilidade na qual uma trama não consistirá na soma dos fios nem na sua partição, mas, sobretudo, dos vazios não repartíveis, dos interstícios que possibilitarão mantê-la em aberto, na iminência do inextinguível: como a meninice, a província e “a dor / de ser” nos quais o coração do poeta Fabrício Corsaletti (não) cabe, porque “quer morar em todas as / casas que vê / e imagina”.

O XEQUE-MATE DE MARCUS VINICIUS QUIROGA

Quem acompanha a carreira literária do poeta Marcus Vinicius Quiroga há de saber os incontáveis motivos que levaram o júri do Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro, a conceder ao seu mais recente livro, O xadrez e as palavras, o segundo lugar na categoria “Poesia”. Apesar da quase invisibilidade no mercado editorial e nas prateleiras de livrarias, Quiroga vem publicando obras – todas elas premiadas – de grande unidade temática e estilística, marcadas por uma linguagem realmente substantiva e cônscia de suas forças (“não há o que a linguagem esconda / que ela própria não descubra”). Da soberba imagética à laboriosa estrofação, o verbo passeia, ainda, por uma polifonia rímica e variabilidade rítmica realizáveis por poucos em um mundo no qual o verso ainda não foi banido pelos modismos experimentais ou pelo vale-tudo gratuito de boa parte das produções mais recentes.

Desde a orelha, somos avisados de que O xadrez e as palavras consiste numa homenagem ao Barroco, “pérola irregular” em que se projeta o “homem em dúvidas, perguntas / e o sentimento de ser duplo”. Se, por um lado, o livro alega-se contemporâneo na forma (de “vocabulário avaro”, “parco de palavras”) com que recupera tal estilo de época, por outro, poderíamos cair no lugar comum de associar literatura contemporânea à prática intertextual, como se, em algum momento da História, alguma escrita não carregasse o peso da tradição, ainda que inconsciente e silenciosamente.

A despeito dos escritores que negam sua época e daqueles que aderem por completo a ela, reproduzindo-a, Marcus Vinicius Quiroga se faria contemporâneo por pertencer verdadeiramente ao seu tempo na medida em que, nas palavras do filósofo Giorgio Agamben, “não coincide perfeitamente com este nem se adéqua às suas pretensões e é por isso (...) inatual; mas, exatamente por isso, exatamente através desse desvio e desse anacronismo, ele é capaz, mais do que os outros, de perceber e apreender o seu tempo”.

Todavia, o pleno domínio dos recursos da língua (nos quais “as palavras (...) alternam lugares pela sintaxe / usam o vazio, a fresta da frase”), aliado a um conhecimento indiscutível da história literária (da qual o poeta retira seus poemas “gregorianos” e se apropria da “matéria da Inconfidência” num “Barroco tardio”), a fim de produzir o efeito estético desejado, não está livre das armadilhas do formalismo. Em diversos poetas, o tratamento retórico da linguagem pode se confundir com o tratamento poético (“a arte nada mais é que truque”, “a arte nada mais é que tramóia”), na medida em que persuade e envolve tanto emocional quanto racionalmente o leitor, provocando o belo agradável, no qual, mediante a quebra da sua resistência psíquica, permitirá que a linguagem concretize a finalidade e eficiência que precederam a elaboração: “as antíteses são sempre bem-vindas, / quando o poema se pretende tenso”; “para não se fixar o real é pêndulo / e as inversões se espalham indistintas”; “posta irregular tem gula / de inversões, interrupções, anacolutos”.

Por esse motivo, preferimos, distantes de qualquer redução de O xadrez e as palavras ao elogio puro da forma, celebrar a contemporaneidade das questões nele encorpadas e de que todas as épocas são filhas: “se o espelho não retrata, deforma” e “não responde, antes indaga” é porque a realidade dentro e fora de nós (entre nós) está sempre mudando. Porém, se apenas existisse a mudança contínua, irreversível, haveria sequer a continuidade e a sensação de que permanecemos, ou seja, a mudança coexiste necessariamente com alguma permanência. Permanecendo, a realidade muda: “nada permanece / além da peste e da morte”. Porque morremos desde a hora de nosso nascimento (“a morte navega no leme”), morrer é a permanência de toda vida, o originário dela e do tempo que, transformando-nos, insere-nos numa tensão de vida e morte em que ambas não se revezam: acontecem simultaneamente. E é a esse embaraço que a experiência do espelho leva o poeta (“nos põe de frente com o vazio”), na condição de “abismo [que] espera o navio [nós!] feito só de abismos”, em que “a imagem não reflete o mundo, que não o sabe, / nem o retém em suas margens”.

A presença de vida-e-morte, luz-e-breu nestas páginas, torna não mais cronologicamente – e, sim, ontologicamente – contemporânea a arquitetura de Marcus Vinicius Quiroga, porque agora se ocuparia nem tanto com a representação de uma estética passada (na qual classificar os poemas em estilos de época se tornaria o parâmetro causal, linear e meramente historiográfico de avaliá-la): muito mas com a apresentação de um instante e um lugar próprios, criados e reabastecidos a cada vez que o leitor a eles se abra.

É a voz de um dos seus versos quem ratifica “a morte como se fosse outro lado, a dobra / da vida”, desdizendo o que outrora o pensamento metafísico e alguns dos poemas “barrocos” de Quiroga chamam por “duplo”. Este ainda não é o “delírio”, mas ainda a “razão”, que tudo separa e divide, desmanchando a complexidade de uma teia em dicotomias. O delírio, o poético é o posto em rede, o entretecido, a dobra, a composição que gera unidade a partir do que se con-funde em trançados e vazios. Na poesia, a multiplicidade em meio à unidade dá-se graças à dobra ontológica em que estamos inseridos e nos possibilita a experiência simultânea de ser e não-ser, do discernível e do indiscernível, do um e do duplo, da terceira margem que sempre terá sido a primeira. Não à toa, comparecem no livro tantas passagens em referência à liminaridade que abre a experiência do desdobramento de si (“e se desdobra em duplo espectro / a repetir-se em variado leque”; “como se o mundo se desdobrasse mapa”; “se as analogias pedem um ‘como’, / é só desdobramento, exercício”; “o que é dito sempre se desdobra”; “o que se desdobra a partir da forma: / a boca que engole / o rabo”).

Em uma dicção que prima por clareza e precisão, Marcus Vinicius Quiroga pensa e celebra a obscuridade e a imprecisão (“se nestes versos digo e desdigo”). Quanto mais a vida parece esclarecer-se, mais o poeta apaga-nos as luzes (“nas orientações ambíguas, de modo que se contradiga / em toda e qualquer escrita”). Tentando desdobrar a existência e a poesia, dobra-as ainda mais (“Ah, mundo da escrita e dos enganos / em tudo dito diz-se o contrário”). A todo momento, a palavra defende “o mundo posto em desordem”, “as cartas embaralhadas”, uma vez que “o mundo não se parece / com números”, mas não cessa de elaborar um trabalho absolutamente organizado, ordenado e milimetricamente calculado (onde “o círculo dá a forma da leitura / para que não haja fresta e fuga”), com as mais diversas escansões, ainda que, no penúltimo bloco, “O poeta e a parábola”, opte por “versos sem rigor de métrica”, “sem compasso ou esquadro”, como se a tentar cumprir, vez por todas, o rompimento da circularidade da vida e de seu estilo, proposta desde o início, no primeiro poema do primeiro bloco da obra: “mas a arte espera que a roda se rompa / e o fio solto, num mover-se longo, / faça itinerário em desatino”.

Essas tantas incoerências, jamais geradoras de um problema para o livro, tornam-no ainda mais lúcido em sua loucura (ou louco em sua lucidez), coerente nas motivações de “um homem preso às suas angústias”. A grandiosidade da obra de Quiroga não está, sumariamente, na sua decisão e habilidade de dialogar com o barroco mediante todo o aparato retórico-formal de que dispõe, mas na questão de o autor, enquanto ser humano tomado pelo extraordinário, fazer-se poeta: um ser vigorosamente possuído e atual, de maneira que, em sua voz, Aleijadinho (“que ofertou seu corpo em partes / e foi se retorcendo para ser / ele a própria arte”) passe a ser cada um de nós e os artistas de todos os tempos: “se a arte também aleija / e se afasta de medidas, // (...) irregular se ergue, como quem se movimenta / em calçamento de pedra”.

Na atual literatura brasileira, desconhecemos quem coincida quantidade e qualidade de produção com a mesma voraz veracidade que Marcus Vinicius Quiroga. O xadrez e as palavras é o grande xeque-mate deste que já é um poeta, brasileiro e universal, do qual crítica e público podem realmente se orgulhar.

FELICIDADE SEM MARGENS

Igor Fagundes

À semelhança de quem, repleto de esperas e espantos, parte em viagem (e, encarnados nas águas do livro, decerto – com ele – partimos), acariciamos nosso coração-marinheiro na proa de uma pergunta: “Seremos felizes aonde nos leva?”. Fundamental no singrar de qualquer humanidade, tal questão, navegante das palavras que agora transbordamos, nos leva ao horizonte do mais recente poemário bilíngüe (português-inglês) de Thereza Christina Rocque da Motta, Marco Polo & A Princesa Azul. “Entre ilhas nebulosas, mares cheios de peixes, sob tormentas e sol a pino”, aqui fazemos eco a “paisagens [que] se mostrem por inteiro” e, nesse sentido, ressoamos logo no princípio – e como princípio de todo o nosso soar – a hesitação paradoxalmente afirmativa da princesa poetizada, “linda como o céu”, na medida em que de sua voz nos apropriamos quando, adaptando-a à primeira pessoa do plural, repetimos o verso: “Seremos felizes aonde nos leva?”.

Aonde nos leva Marco Polo: a um mundo plural em que toda pessoa a seu lado é primeira e, por esse motivo, se faz título dos poemas inscritos no primeiro bloco da obra: “A odalisca”, “A cortesã”, “A imperatriz”, “A mulher de Ormuz”, “A esposa”, “A filha” e, claro, “A princesa azul”, que, por sua vez, batiza também a segunda e última série do livro-saga. Destarte, note-se, não por acaso, que essas personagens evocadas pela pena de Thereza Christina Motta são femininas e, na qualidade de interlocutoras de Marco Polo, com direito à palavra e a tomar partido no discurso poético, passam de coadjuvantes a protagonistas de algum passageiro-eterno momento do viajante. A leitura da orelha nos serve de âncora: a poeta revela que, por três anos, se dedicou a descobrir e celebrar as mulheres que Marco Polo conheceu: “Quantas mulheres são necessárias para se fazer um grande homem?”. Eis mais uma pergunta inquieta a acompanhar-nos na bagagem, junto àquela que, ainda nos mirando, não cansamos de contemplar: “Seremos felizes aonde nos leva?”.

Aonde nos levam as mulheres de Marco Polo e/ou de Thereza Christina Motta (não importa, se também delas já somos, por elas abduzidos no transe da leitura): à felicidade de uma “vida nova e inesperada a se descortinar, além”; de uma história nova na qual o feminino receba o peso que merece, e mais ainda a leveza que lhe cabe, sem subjugar-se a uma viciosa invisibilidade concedida e consentida pelas versões oficiais do branco, europeu, masculino. Conforme esclarece a autora, “nas biografias elas não existem, ou se conhecemos seus nomes, desconhecemos o quanto sofreram ou choraram por eles [pelos homens históricos], e muito menos o que disseram”. Espraiando-se em uma Thereza que também é Christina, muitas mulheres em uma cantam o homem que valeu por muitos. Com uma espécie de contundência delicada, esta escrita também nos designa porque, nascendo mítica, se nos empresta para que reencontremos o sentido mágico e, por isso mesmo, verdadeiro da nossa humana jornada. Nadamos a vertigem.

Se não caminhamos sozinhos, se caminhar é conviver, abrir-se ao outro, no estabelecimento dos elos que nos libertam para a vida, “serpenteando a terra, à procura de seu destino”, então afirmamos: somos felizes aonde Marco Polo e a Princesa Azul nos levam. Somos felizes porque somos levados e não apenas levamos. Porque não somos apenas sujeitos de, mas sujeitos aos espaços, temporalidades e personas “por onde já nos perdemos”.

Perdemo-nos no livro de Thereza Christina Motta para encontrá-lo por sob os marcos e entre os polos de cada um de seus encontros: estará conosco mesmo depois de partirmos. Deixamo-nos ouvir aquilo que ele não escreveu nem escreve para nomearmos Mar em Silêncio esse infinito calar no hiato dos barulhos da onda. Reparemos: os poemas, em sua precisa contenção e, simultaneamente, em seu sutil vazar de imprecisas paragens, são barcos na amplitude branca do oceano-página. A autora dá luz à ribalta desse cenário. Ela valoriza o que, na folha, segue mudo, porque, imenso, o mundo que convoca. No primeiro bloco, aquosamente dramatúrgico, performático, o verbo. No segundo, distendido em prosa, quase aforismático. Em ambos os casos, sobressai o que, do barco, não se vê, mas se imagina ou se penetra quando dele saltamos: conchas e corais, pedras e polvos, algas e ostras, aprendizagem de abismos. Abandona-se a palavra em determinado ponto (no ponto que nunca é, de fato, final), para alcançarmos o que carece de fundo – o sagrado que nunca se desvela, somente se re-vela e, como véu, veste o amor que parece, em síntese, ser o personagem central dessas léguas e léguas por onde seguimos, graças à poiesis, felizes.

JARDIM EM CORO

Igor Fagundes

A começar pelo título, Todas as vozes cantam, o livro de estréia do poeta Leandro Jardim é todo marcado pela humildade de se assumir imbuído dos vários timbres auscultados no caminho: “há como te ser?”. Embora qualquer ser humano exista contaminado pelas obras que leu, pelos lugares que visitou, pelas gentes e coisas com as quais morreu e ressurge, poucas vezes esta caixa de ressonâncias é trazida à página de modo tão sincero, o que não significa, em Jardim, o empobrecimento do potencial velante da palavra a redundar no óbvio: o fato de que somos feitos por um trançado de “diálogos” com “tendência pra variedades” e “transformações por contextos”.

O que não é óbvio no mundo das subjetividades – mas comemorado em Leandro Jardim – é o esvaziamento desta retórica egocêntrica a partir da qual fomos educados a entender a poesia como expressão de um eu, de maneira que esse autocentramento ratificasse uma genialidade essencial, um apartamento das dimensões da interioridade e da exterioridade (“É coisa de dentro ou de fora?”), como se um não fosse gerador do outro e os contornos, previamente definidos, permanecessem estáticos. O poeta não quer “falar sozinho” e “espelhar somente a alma sua”.

Mediante o apelo recorrente à segunda pessoa do singular (“eu que não sou nada / apenas teu”), somos assim convocados a um mundo de referências e reverências pessoais, literárias, não fossem os catorze poemas dedicados a companheiros de vida, as homenagens a Fernando Pessoa e Manoel de Barros, bem como as reveladoras epígrafes de Drummond e Paulo Leminsky. De Pessoa certamente o encanta a polifonia heteronímica, a busca de uma poesia de pensamento, menos fanopaica do que logopaica, cujos momentos de quase prosaísmo parecem caros aos poemas distendidos de Jardim, à exceção dos instantes em que o jogo de palavras leminskiano o inspira ao comedimento, de polifonia agora rímica, ou, na pista de Barros, de poligrafia lingüística, a propor desconsertos e concertos sintático-semânticos. Tudo reunido por um drummondiano – porque universal – “sentimento do mundo”, cujas “mãos dadas” se transfiguram no “coro contemporâneo” deste rapsodo de 28 anos.

Em se tratando de estréia, devemos ser pacientes – o que não equivale a dizer menos exigentes – no julgamento artístico do livro. Só há sentido em exigir mais de alguém, e perseverar nessa exigência, se o criticado tem reais condições de se superar diuturnamente. Por isso, não podemos deixar de pôr em questão os diversos recursos de linguagem forçadamente utilizados por aquele que, sedento de explorar os ensejos lúcidos da palavra, deixa ainda à mostra os andaimes da casa construída. Sobretudo no que diz respeito ao uso das rimas, majoritariamente soantes (“embora porque é hora / porque é manhã agora / manhã doce com cheiro de amora”), não raro vertidas de maneira pouco fluente, levando-nos a suspeitar de alguma gratuidade ou falso ganho estilístico: “Tudo é métrica / Não simétrica, / mas rimétrica. / Essa é minha estética”.

Os melhores momentos de Todas as vozes cantam acontecem quando o poeta abre-se ao pensamento originário, liberto de qualquer a priori estético (“o que é bonito separa-se, é classificável?”), para além das armadilhas de parecer criativo graças a trocadilhos e jogos sonoros inócuos: “forte risco de ser em vão / (tentação). / É ao menos a tentativa, então”. Não que se proponha descartar a técnica em nome de um vale-tudo inconsistente (“Ah, poesia, minha seita! / Ah, papel, que tudo aceita!”), mas lembrar que o aparato técnico deve servir a uma arte e não esta vir a reboque daquele: “Sou poeta, e daí, / se a matéria prima / pela vida? // (E não pela rima)”.

Depois de Leandro Jardim expor os fluidos tantos que transpira em seu corpo poético e emotivo, é possível que nós, leitores por ele desejados (“preciso da opinião alheia”), nos convertamos em mais um destes suores capazes de alimentar o calor de seu trabalho e respiração. Afinal, “o ar que se expira também tem oxigênio” e, inspirados pelo do poeta, devolveríamos: “então lê aí e me diz o que achou”.

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009


Fomos indicados ao Prêmio Dardos de Blogs!

segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

AMARL EL LINGUAJE, EVOCAR LO HUMANO

Igor Fagundes
(prefácio para edição bilíngüe do livro Vocabulário: um homem), de Rita Moutinho)

El apasionado – o, mejor dicho, apasionante– libro de poemas de Rita Moutinho, Vocabulario; un hombre, despierta en nuestros nervios esta irrecusable provocación: tornar su propio título un poema aparte; un poema que, por sí mismo, convoca a las partes del todo poético a participar de una apostática y poderosa articulación entre dos sustantivos densos y condesadores: vocabulario y hombre. ¿Qué es el vocabulario? ¿Qué es el hombre? Tanteamos esos nombres como si fuesen un “manojo de llaves” en nuestra última “ensenada” desbordada en “olas”. Nos volvemos orilla, arena, playa, puerto. También agua.

En las palabras “evocar”, “provocación” y “convoca”, anterior e intencionalmente empleadas, exclamamos la misma raíz, indoeuropea, de “vocabulario” (*wek.w), que originariamente significa la emisión de voz con todas sus fuerzas religiosas o jurídicas resultantes. Aunque no se trate de un libro de religión o de derecho y la fuerza en él pulsante sea la de la poesía, Vocabulario: un hombre trae curiosamente, como poema de apertura, “Abadesa” – palabra de sentido claramente religioso. En una especie de tensión entre lo profano que “dirige la danza” y las “celdas y hábitos”, de lo recoleto a lo divino, el hacer poético se revela el decir, por excelencia, de lo sagrado en la “orilla del cuerpo”, sin que por sagrado se entienda lo contrario de profano y sin que sea el sinónimo de religioso en su acepción doctrinario-litúrgica (ya que, etimológicamente, tiene el rico sentido de religare, religio, religamiento, reunión y comunión de cosas, personas, mundos, que sería, finalmente, característica mater de lo poético).

Asumir que la poesía es una de las manifestaciones posibles de lo sagrado es recuperar el sentido griego y genesíaco del verbo poien, aquel en el cual todo lo que no es pasa a ser y que, siendo, resguarda el no ser como posibilidad inmanente y continua de un llegar a ser. Antes que confundirse con el ámbito religioso, lo sagrado es este propio (sin) lugar del no ser que, en nosotros, encuentra espacio y tiempo, transformándose en fuente de todas nuestras posibilidades, incluso la de crear, ya que, de manera concomitante, somos creados por él a cada momento. Lo sagrado es este íntimo extranjero que nos asedia y nos crea y recrea segundo a segundo. Es esa chispa de lo más familiar y, al mismo tiempo, de lo más extraño e insondable. Nuestra propia vida-muerte en tanto no nos pertenece, en tanto nos habita como potencia impersonal particularizada en los micro y macrocosmos de los cuerpos. Lo atópico que, sobrepasando todos los topos y utopías, pasa a ser el entre-topos donde lo visible y lo invisible se tocan. Una topología tranformada en logotopía. Lo inmaterial en tensión con lo tangible. Lo indecible en tensión con lo decible. Lo desconocido por conocerse sólo en la reiteración de la oscuridad que lo enciende y lo aclara como una luciérnaga. He ahí el recorrido del desvelar autovelante de la poesía: “trabar contacto con lo intacto, / incendiarlo siendo fuelle con mi aliento”. Y Rita Moutinho sabe que “lo invisible es sensible a sus ojos”, que “el reflejo la devuelve muda”, que “el eco le retorna imagen”. Y así, como verdadera poeta que es, piensa por imágenes, con imágenes, en imágenes – las imágenes. Por ritmos y ecos, con ritmos y ecos, en ritmos y ecos – los ecos y ritmos. Y nombrar lo sagrado – oficio iluminador del poeta, como dijo Martin Heidegger, es subrayar el misterio de todo en medio de la supuesta claridad o evidencia de las cosas, lo extraordinario punzante o latente en las aparentes obviedades y banalizaciones. Y ese extraordinario es, en Rita, el que recorre los meandros de la carne, del sexo, del deseo, de las relaciones amorosas entre géneros, para, al fin, trascenderlos y uncirlos rumbo a la cosa única que es la multiplicidad de las gentes y nombres en (con)fusión. En esa divina sensualidad y sexualidad de Rita, allí está “la obra maestra escribiéndose / en la yema del pezón”.

Por eso, el erotismo de “Abadesa” y de los demás poemas del libro nos invita a pensarlos como metapoesía que evoca la pulsión de Eros propia del quehacer poético, en la medida en que este se consuma fecundante, fecundado, grávido y generador de vida(s) frente a la pulsión de thanatos con el que se imbrica y a la cual responde con la vitalidad de los universos literarios gestados y paridos. El poetizar se concreta, así, como acto amoroso, vital, vitalista, entre hombre y palabra, porque la sabe humana y humanizadora. Palabra: vocabulario: un hombre: un cuerpo. Vivo. Una vida. Y mucha. Por muchas. Voces. No las tenemos porque hablamos. Sólo hablamos porque tenemos voz. Porque en nosotros, ganó la vida y le toca hacer la suya. Porque, en el vigor de vivir, somos los escuchas de este misterioso silencio que nos canta humanos y, en seguida, nos impulsa a cantar, a ser otros y a querernos el otro. Lo sagrado es, pues, la identidad de todas esas alteridades, el mar donde desaguan todos esos ríos, la confluencia de todas las lenguas en el mayor lenguaje ontológico de la vida, el tácito vocabulario de la realidad transformada, en el pensamiento, en la página, en el poema, intermitente aprendizaje de habla. Infancia perpetua, perdida y pendiente –pensada– entre y con sentidos y sonidos, como en los ejemplares versos “Fuego / falso / fatuo / halo / amor brujo / nómade / nombre / nada / de carne”; “fardos, / frágiles, peligrosas, pesadas cargas”. En la poesía de Rita Moutinho, asonancias y aliteraciones, rimas internas y externas, asonantes o consonantes, metros fijos, versos endecasílabos, o libres, o bárbaros, nunca serán mero experimentalismo estético, antes de realizarse como memoria de lo que la palabra es como cuerpo, en cuya materialidad y reelaboraciones formales se reafirma la mudez, el abismo –lo sin forma, lo sin materia, lo sin límites- de nosotros mismos, dando –al verbo y a nuestra (falta de) verba– alma. Movimiento. Danza:

La danza de los cuerpos
lenguaje
contra la rigidez del muro
silencio
mezclaba cimiento y barro
doblaje.
Osados eran los pasos de los labios
lenguas
las manos gestaban caricias
hablas
y en las bandas de carne y hueso
entrelíneas
corrían las respiraciones

palabras.

Reconocer palabras como respiraciones, figuraciones corpóreas, físicas, fisiológicas es percibir, por ejemplo, que abolir comas en determinados momentos del libro no significa, una vez más, ansiedad esteta, transgresión por la transgresión, sino extensión del cuerpo-escritor en la intensidad del cuerpo-escrito: “sorda sorda alarma”; “aceite aceite seda” y “salo endulzo entibio” son algunos de los ejemplos en que no puntuar es ya puntuar nuestra asma o el ritmo acelerado de nuestros corazones, de nuestra presión arterial. Nuestra transpiración.

Por lo menos desde Platón sabemos, por boca de Sócrates en el diálogo Fedro, que el lenguaje o una obra es un “cuerpo vivo, de modo que no le falten, ni la cabeza, ni los pies, y de modo que tanto los órganos internos como los externos se encuentren ajustados unos a los otros, en armonía en el todo”. De lo contrario, el lenguaje estaría restringido al ámbito de la lengua, esto es, del código lingüístico, abstracto, confundido como facultad o construcción humana. Pero sólo puede haber lengua, código, construcción y humanidad porque, primordialmente, ya estamos oyendo la voz silenciosa del lenguaje que hay en nosotros, entre nosotros, alrededor de nosotros, como fuerza de reunión de todos los seres, que impone al caos del vivir un cosmos-cohesión fundador de todo con-vivir.

Una vez concebido el lenguaje entre caos y cosmos, no bastarían al poeta y al lector los sentidos diccionarizados, fosilizados. Poética es, por excelencia, toda palabra que invoca la cosa viva que ella es; la voz que ella guarda y vela y desvela cuando la revisitamos revirginalmente. Por eso, buscar en el diccionario qué es “vocabulareio” o qué es “hombre” es rendirse a la asfixia de las respuestas hechas e ignorar la poesía propia de las voces y de las hablas. El título del poemario de Rita mantiene esos sentidos en suspenso: Vocabulario, hombre, vocabulario-hombre, hombre-vocabulario... Según los diccionarios, vocabulario se restringiría a ser tanto el conjunto de palabras de una lengua como el conjunto de palabras de cierto estadio o momento histórico de la lengua. O además: el conjunto de palabras especializadas en cualquier campo de conocimiento o actividad. O más: el conjunto de palabras usadas por un autor en su obra. O, en fin, el nombre del libro que contiene esas palabras en orden alfabético, o sea, el diccionario.

Sólo en este horizonte el libro de Rita Moutinho puede ser una especie de diccionario: cuando cada palabra pasa a ser vivida como un gesto; cuando la lengua se torna lenguaje, el discurso se pone en obra y la obra se realiza como arte. Cuando, en fin, el “vocabulario; celda y hábitos” se libera en “vocabulario: un hombre”. Cuando, en el contacto, “roca” toca en “harina y piel”. Cuando “el amor aborda y convida”. “La emoción concede”. Y “el cuerpo ardiente / templa las olas”.

Al aprehender y comprender el vocabulario de la lengua en tanto ser vivo, que tiene su dinámica propia dentro del todo corporal vivo que cada obra constituye, Rita Moutinho no nos somete al raciocinio abstracto gramatical, sino al pensar poético que adviene en la vigencia y la dinámica de la propia obra, en la tensión entre una realidad siempre mayor que lo ya dado y los mundos que están todavía por darse, sin que lo uno y lo otro se agoten en el acervo de las realizaciones. En el rozarse de los cuerpos, en la disipación de los amores, en el conflicto de los bien y mal me quieres, en lo dionisíaco de la falta de contornos entre el yo y sus alteridades, lo apolíneo de la experiencia poética, la donación de la belleza y el orden a lo que irónicamente la depone y la contrapone: el desorden, lo explosivo, no siempre alegre, de las emociones.

A la obra como cuerpo vivo y al ser vivo como obra equivale, aquí, este vocabulario: un hombre. Al fin de cuentas, lo que somos como cuerpo es la propia lengua, ya que ella no es un simple código, sino un soma, la memoria viva y poética del ser humano. Y esto “humano” es una conquista, pues no nacemos humanos: nos hacemos. Humanizarnos es dejarnos atravesar por este soma en tanto lengua-lenguaje-memoria-e-historia que se hace y nos construye poéticamente. Como soma, esto es, como cuerpo, la obra literaria no es un organismo dotado de funciones, ni un utensilio ni un instrumento, aunque se empeñe por un bien, aunque la prenda que le da plenitud sea el sentido de ser lo que ella todavía no es, pero podría ser en el acontecer dialógico y erótico entre autor, poema y lector. Los hablantes y los lectores viven el desafío de, mediante el diálogo, realizarse como cuerpo vivo que es la lengua. Y así el decir surge y resurge como corporeidad, Eros, erotismo, vitalidad:

Actuar los cuerpos en conjunto,
conjugar, ampliar en prolongamiento
el gesto del otro,
poros contra poros transpirantes
haciendo el collage de los amantes,
cociendo tejidos,
rasgando los rasgones
de los sentidos.


El cuerpo-lengua y el cuerpo que cada lector busca en el diálogo de la lectura son uno y el mismo. Ese cuerpo vivo que cada lector es, en su dejarse atravesar por la lengua viva, no se distingue del cuerpo vivo que la lengua es en tanto cuerpo. Por eso, cuando, apresuradamente, decimos que este es un libro sobre el amor y que el hombre poetizado en el vocabulario y como vocabulario corresponde al hombre-género masculino deseado/ soñado/ renunciado por un yo lírico femenino, cometemos el lamentable equívoco de subyugar la obra a lo unívoco.
¿De quién es “la voz de contralto”? ¿De quién las “manos danzando el fuego”? ¿De quién los “hombros en alas”? ¿En quién experimentamos “el tacto, recorriendo el perfil de cada trazo”? ¿Quién es el “tú” del verso “escalarte de los pies a la cabeza”? En “ni pasado / ni herrumbre / corroen / a aquel hombre”, ¿quién es, finalmente, ese ser masculino? ¿Será realmente una referencia esctricta y restricta al género? Cada vez que la lírica de Rita se refiere al hombre, lo pienso como el propio lenguaje –humanizado, humanizador– que amamos; la propia aventura de la caminata de vida hacia quien dedicamos nuestro amor; el propio mundo revelado por nosotros. Y claro, el propio amor que amamos en el gesto de tornarlo palabra. Solamente porque, primero, somos amantes del amor, podemos amar todo el resto. Todo el resto que, por él elegido, por él amado, se vierte en nosotros como lugar de voz: vocabulario. A la espera de nuestro descanso.

Cuando ampliamos el sentido de hombre/género a hombre/ ser vivo y hombre/vocabulario, queremos decir que sólo es posible compulsar la experiencia femenina con su opuesto (transformando lo poético en un locus de representación o transfiguración subjetiva) porque primordialmente el locus del lenguaje ya fue habitado. No hay experiencia sin lenguaje, así como no hay una infancia prelingüística. De ahí nuestra referencia al poeta como un niño: la infancia es al mismo tiempo ausencia y busca de lenguaje. Por ser carente de palabra, es también su condición de emergencia. Pero el acceso a la infancia sólo puede acontecer en el lenguaje. En ese círculo que abriga lenguaje e infancia debe ser buscada la experiencia. El hecho de que el ser humano no nazca hablando, de tener infancia, de que su hablar y su “ser hablado” no estén previamente determinados es lo que constituye la experiencia. Es factible decir que, en cierta forma, estamos siempre aprendiendo a hablar, nunca sabemos hablar, nunca controlamos el habla o la anticipamos totalmente. Hay siempre alguna una especie de inicio y, por lo tanto, nunca acaba nuestra experiencia de lenguaje. Sin ella, no tendríamos representación de identidades femeninas, de esta mujer que “conoce el cielo, / no decide ante la muerte, / controla pasos, palabras, gestos. / Rara vez ofrece el rostro / y conteniéndose en cuerpo, / madura lo incierto”.

Sin la experiencia –léase el amor– del lenguaje, sin “prensar nuestros dedos en sus dedos”, no habría siquiera lo incierto. No seríamos modificables. No seríamos “veleros”. No andaríamos “sobre las aguas”. Celébrese, en Rita, este erotismo, por excelencia de, en, y con el lenguaje. Y “el fin de este poema leeremos / en el tiempo”.