sexta-feira, 10 de abril de 2009

CORPO INACABADO

Debruçados no parapeito das janelas abertas pela morada poética de Fabrício Corsaletti, respondemos, sem hesitação, à paisagem avistada: “A poesia brasileira vai muito bem, obrigado”. Em Estudos para o seu corpo, o poeta reúne seus dois primeiros livros publicados (Movediço, 2001; e O Sobrevivente, 2003) e mais dois inéditos (Demolições e Estudos para o seu corpo, este último a batizar todo o volume e feito de um único poema dividido em dezenove partes). A cada obra, são notáveis o amadurecimento e adensamento do trabalho de Corsaletti, como se a voz lírica, sóbria e contida, “estudasse” meticulosamente seu próprio timbre, afinando-o em diferentes tons nas colorações da infância, dos atritos da cidade em fuga ou forjada (“a que não sei como chegar”) e de um corpo concreto ou idealizado, sempre atravessado por outro.

A ambigüidade característica de toda escrita poética começa já no pronome possessivo presente no título Estudos para o seu corpo: este “seu” pode referir-se ao corpo do leitor, ao corpo do próprio autor ou algum terceiro que será, adiante, no corpo da linguagem, personagem, cenário e enredo. Tratar-se-ia, afinal, da corporeidade feminina, anatomicamente cartografada não pela sensibilidade de um poeta, digamos, masculino, uma vez que, ouvindo Cecília Meirelles e Clarice Lispector, escritor e poeta não têm sexo, ou possuem os dois, o que dá no mesmo, “como se / o sol / fosse / possível / ser dois / sóis”.

Na leitura destes Estudos, o ambíguo “seu”, longe de gerar um problema para a apreensão do sentido do título, tem a felicidade de evocar a desaprendizagem dos limites entre corpos explorada nos poemas, dada a permeabilidade e inacabamento dos tecidos corporais e lingüísticos: ora a misturarem-se a gêneros distintos no mapeamento do sexo oposto (“Amo aquela mulher / desde o momento / em que a vi mijando / descontrolada em pé”), ora a confrontar espaços e temporalidades, como os da provinciana infância (“saía da panela / (...) um cheiro forte / de passado”) reunida aos de uma cidade difusa e fragmentária, factual ou imaginária, ainda ou futuramente presente (“A cidade era maior”).

Arrebatados, por esta mulher-cidade, pelas cidades da mulher desenhada no ritmo entrecortado do amor, quem escreve e quem lê não imitam ou tomam a forma feminina, mas – na memória do que aprendemos com Gilles Deleuze – emitem partículas que entram na zona de vizinhança de uma micro-feminidade, de maneira que possamos produzir, em nós, uma mulher molecular – procedimento não exclusivo do homem, haja vista que a própria mulher como entidade molar teria de tornar-se mulher para que o homem também se torne ou tenha a possibilidade de tornar-se: “entrei na sala / onde você trabalha / sentei / na sua mesa / vi o sol se pôr / do seu ponto / de vista”. Seja em Deleuze, seja em Corsaletti, todos os devires começam e passam pelo devir-mulher na condição de chave para os demais: “essa mulher / (...) é um / corpo / de luz / no centro / do dia”.

Tal desfazimento de contornos, a um só tempo, do substantivo “corpo” (de provisória e mutante substância) e do pronome “seu” (em prol de provisórios e mutantes nomes) inauguraria uma curiosa contradição com outra palavra preciosa no título: “Estudo”. Afinal, se estudar implica um sujeito e um objeto de conhecimento, em se tratando de poesia não podemos supor essa paralisia dicotômica, essa tomada de distância rumo a um esclarecimento. Enquanto o verbo conhecer faz-se pertinente em uma fala científica, representativa, conceitual, a conjugação de um saber dá-se na primeira pessoa do plural de uma poética, porque esta não informa a respeito de um eu ensimesmado e o representa; antes, apresenta-nos, na palavra, o perfume, a cor, a textura, a música e o gosto das coisas dentro e fora de tudo, nada. A poesia encarrega-se de nos aproximar do que supostamente está diante de nós e se nos revela dentro, comungado conosco, transfigurado. A escrita advém do sabor (do saber) dessa experiência, da língua física confundida à língua verbal, a impelir a imaginação criadora despertada pela disputa entre memória e esquecimento, no embaço de sentidos que só poderá ser chamado de “estudo” por ironia do próprio fracasso deste intento. Em Corsaletti, quanto mais se pretende desdobrar o corpo feminino, mais ele se dobra, e tal frustração é a sua maior glória.

A palavra análise, por exemplo, e que significa originalmente desligar, desmanchar, desfazer uma trama, nada tem a ver com a prática do poeta, se dela não se espera o acesso a uma unidade dividida (isto é, perdida), mas a composição de uma liga, de uma mancha e de uma indivisibilidade na qual uma trama não consistirá na soma dos fios nem na sua partição, mas, sobretudo, dos vazios não repartíveis, dos interstícios que possibilitarão mantê-la em aberto, na iminência do inextinguível: como a meninice, a província e “a dor / de ser” nos quais o coração do poeta Fabrício Corsaletti (não) cabe, porque “quer morar em todas as / casas que vê / e imagina”.

O XEQUE-MATE DE MARCUS VINICIUS QUIROGA

Quem acompanha a carreira literária do poeta Marcus Vinicius Quiroga há de saber os incontáveis motivos que levaram o júri do Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro, a conceder ao seu mais recente livro, O xadrez e as palavras, o segundo lugar na categoria “Poesia”. Apesar da quase invisibilidade no mercado editorial e nas prateleiras de livrarias, Quiroga vem publicando obras – todas elas premiadas – de grande unidade temática e estilística, marcadas por uma linguagem realmente substantiva e cônscia de suas forças (“não há o que a linguagem esconda / que ela própria não descubra”). Da soberba imagética à laboriosa estrofação, o verbo passeia, ainda, por uma polifonia rímica e variabilidade rítmica realizáveis por poucos em um mundo no qual o verso ainda não foi banido pelos modismos experimentais ou pelo vale-tudo gratuito de boa parte das produções mais recentes.

Desde a orelha, somos avisados de que O xadrez e as palavras consiste numa homenagem ao Barroco, “pérola irregular” em que se projeta o “homem em dúvidas, perguntas / e o sentimento de ser duplo”. Se, por um lado, o livro alega-se contemporâneo na forma (de “vocabulário avaro”, “parco de palavras”) com que recupera tal estilo de época, por outro, poderíamos cair no lugar comum de associar literatura contemporânea à prática intertextual, como se, em algum momento da História, alguma escrita não carregasse o peso da tradição, ainda que inconsciente e silenciosamente.

A despeito dos escritores que negam sua época e daqueles que aderem por completo a ela, reproduzindo-a, Marcus Vinicius Quiroga se faria contemporâneo por pertencer verdadeiramente ao seu tempo na medida em que, nas palavras do filósofo Giorgio Agamben, “não coincide perfeitamente com este nem se adéqua às suas pretensões e é por isso (...) inatual; mas, exatamente por isso, exatamente através desse desvio e desse anacronismo, ele é capaz, mais do que os outros, de perceber e apreender o seu tempo”.

Todavia, o pleno domínio dos recursos da língua (nos quais “as palavras (...) alternam lugares pela sintaxe / usam o vazio, a fresta da frase”), aliado a um conhecimento indiscutível da história literária (da qual o poeta retira seus poemas “gregorianos” e se apropria da “matéria da Inconfidência” num “Barroco tardio”), a fim de produzir o efeito estético desejado, não está livre das armadilhas do formalismo. Em diversos poetas, o tratamento retórico da linguagem pode se confundir com o tratamento poético (“a arte nada mais é que truque”, “a arte nada mais é que tramóia”), na medida em que persuade e envolve tanto emocional quanto racionalmente o leitor, provocando o belo agradável, no qual, mediante a quebra da sua resistência psíquica, permitirá que a linguagem concretize a finalidade e eficiência que precederam a elaboração: “as antíteses são sempre bem-vindas, / quando o poema se pretende tenso”; “para não se fixar o real é pêndulo / e as inversões se espalham indistintas”; “posta irregular tem gula / de inversões, interrupções, anacolutos”.

Por esse motivo, preferimos, distantes de qualquer redução de O xadrez e as palavras ao elogio puro da forma, celebrar a contemporaneidade das questões nele encorpadas e de que todas as épocas são filhas: “se o espelho não retrata, deforma” e “não responde, antes indaga” é porque a realidade dentro e fora de nós (entre nós) está sempre mudando. Porém, se apenas existisse a mudança contínua, irreversível, haveria sequer a continuidade e a sensação de que permanecemos, ou seja, a mudança coexiste necessariamente com alguma permanência. Permanecendo, a realidade muda: “nada permanece / além da peste e da morte”. Porque morremos desde a hora de nosso nascimento (“a morte navega no leme”), morrer é a permanência de toda vida, o originário dela e do tempo que, transformando-nos, insere-nos numa tensão de vida e morte em que ambas não se revezam: acontecem simultaneamente. E é a esse embaraço que a experiência do espelho leva o poeta (“nos põe de frente com o vazio”), na condição de “abismo [que] espera o navio [nós!] feito só de abismos”, em que “a imagem não reflete o mundo, que não o sabe, / nem o retém em suas margens”.

A presença de vida-e-morte, luz-e-breu nestas páginas, torna não mais cronologicamente – e, sim, ontologicamente – contemporânea a arquitetura de Marcus Vinicius Quiroga, porque agora se ocuparia nem tanto com a representação de uma estética passada (na qual classificar os poemas em estilos de época se tornaria o parâmetro causal, linear e meramente historiográfico de avaliá-la): muito mas com a apresentação de um instante e um lugar próprios, criados e reabastecidos a cada vez que o leitor a eles se abra.

É a voz de um dos seus versos quem ratifica “a morte como se fosse outro lado, a dobra / da vida”, desdizendo o que outrora o pensamento metafísico e alguns dos poemas “barrocos” de Quiroga chamam por “duplo”. Este ainda não é o “delírio”, mas ainda a “razão”, que tudo separa e divide, desmanchando a complexidade de uma teia em dicotomias. O delírio, o poético é o posto em rede, o entretecido, a dobra, a composição que gera unidade a partir do que se con-funde em trançados e vazios. Na poesia, a multiplicidade em meio à unidade dá-se graças à dobra ontológica em que estamos inseridos e nos possibilita a experiência simultânea de ser e não-ser, do discernível e do indiscernível, do um e do duplo, da terceira margem que sempre terá sido a primeira. Não à toa, comparecem no livro tantas passagens em referência à liminaridade que abre a experiência do desdobramento de si (“e se desdobra em duplo espectro / a repetir-se em variado leque”; “como se o mundo se desdobrasse mapa”; “se as analogias pedem um ‘como’, / é só desdobramento, exercício”; “o que é dito sempre se desdobra”; “o que se desdobra a partir da forma: / a boca que engole / o rabo”).

Em uma dicção que prima por clareza e precisão, Marcus Vinicius Quiroga pensa e celebra a obscuridade e a imprecisão (“se nestes versos digo e desdigo”). Quanto mais a vida parece esclarecer-se, mais o poeta apaga-nos as luzes (“nas orientações ambíguas, de modo que se contradiga / em toda e qualquer escrita”). Tentando desdobrar a existência e a poesia, dobra-as ainda mais (“Ah, mundo da escrita e dos enganos / em tudo dito diz-se o contrário”). A todo momento, a palavra defende “o mundo posto em desordem”, “as cartas embaralhadas”, uma vez que “o mundo não se parece / com números”, mas não cessa de elaborar um trabalho absolutamente organizado, ordenado e milimetricamente calculado (onde “o círculo dá a forma da leitura / para que não haja fresta e fuga”), com as mais diversas escansões, ainda que, no penúltimo bloco, “O poeta e a parábola”, opte por “versos sem rigor de métrica”, “sem compasso ou esquadro”, como se a tentar cumprir, vez por todas, o rompimento da circularidade da vida e de seu estilo, proposta desde o início, no primeiro poema do primeiro bloco da obra: “mas a arte espera que a roda se rompa / e o fio solto, num mover-se longo, / faça itinerário em desatino”.

Essas tantas incoerências, jamais geradoras de um problema para o livro, tornam-no ainda mais lúcido em sua loucura (ou louco em sua lucidez), coerente nas motivações de “um homem preso às suas angústias”. A grandiosidade da obra de Quiroga não está, sumariamente, na sua decisão e habilidade de dialogar com o barroco mediante todo o aparato retórico-formal de que dispõe, mas na questão de o autor, enquanto ser humano tomado pelo extraordinário, fazer-se poeta: um ser vigorosamente possuído e atual, de maneira que, em sua voz, Aleijadinho (“que ofertou seu corpo em partes / e foi se retorcendo para ser / ele a própria arte”) passe a ser cada um de nós e os artistas de todos os tempos: “se a arte também aleija / e se afasta de medidas, // (...) irregular se ergue, como quem se movimenta / em calçamento de pedra”.

Na atual literatura brasileira, desconhecemos quem coincida quantidade e qualidade de produção com a mesma voraz veracidade que Marcus Vinicius Quiroga. O xadrez e as palavras é o grande xeque-mate deste que já é um poeta, brasileiro e universal, do qual crítica e público podem realmente se orgulhar.

FELICIDADE SEM MARGENS

Igor Fagundes

À semelhança de quem, repleto de esperas e espantos, parte em viagem (e, encarnados nas águas do livro, decerto – com ele – partimos), acariciamos nosso coração-marinheiro na proa de uma pergunta: “Seremos felizes aonde nos leva?”. Fundamental no singrar de qualquer humanidade, tal questão, navegante das palavras que agora transbordamos, nos leva ao horizonte do mais recente poemário bilíngüe (português-inglês) de Thereza Christina Rocque da Motta, Marco Polo & A Princesa Azul. “Entre ilhas nebulosas, mares cheios de peixes, sob tormentas e sol a pino”, aqui fazemos eco a “paisagens [que] se mostrem por inteiro” e, nesse sentido, ressoamos logo no princípio – e como princípio de todo o nosso soar – a hesitação paradoxalmente afirmativa da princesa poetizada, “linda como o céu”, na medida em que de sua voz nos apropriamos quando, adaptando-a à primeira pessoa do plural, repetimos o verso: “Seremos felizes aonde nos leva?”.

Aonde nos leva Marco Polo: a um mundo plural em que toda pessoa a seu lado é primeira e, por esse motivo, se faz título dos poemas inscritos no primeiro bloco da obra: “A odalisca”, “A cortesã”, “A imperatriz”, “A mulher de Ormuz”, “A esposa”, “A filha” e, claro, “A princesa azul”, que, por sua vez, batiza também a segunda e última série do livro-saga. Destarte, note-se, não por acaso, que essas personagens evocadas pela pena de Thereza Christina Motta são femininas e, na qualidade de interlocutoras de Marco Polo, com direito à palavra e a tomar partido no discurso poético, passam de coadjuvantes a protagonistas de algum passageiro-eterno momento do viajante. A leitura da orelha nos serve de âncora: a poeta revela que, por três anos, se dedicou a descobrir e celebrar as mulheres que Marco Polo conheceu: “Quantas mulheres são necessárias para se fazer um grande homem?”. Eis mais uma pergunta inquieta a acompanhar-nos na bagagem, junto àquela que, ainda nos mirando, não cansamos de contemplar: “Seremos felizes aonde nos leva?”.

Aonde nos levam as mulheres de Marco Polo e/ou de Thereza Christina Motta (não importa, se também delas já somos, por elas abduzidos no transe da leitura): à felicidade de uma “vida nova e inesperada a se descortinar, além”; de uma história nova na qual o feminino receba o peso que merece, e mais ainda a leveza que lhe cabe, sem subjugar-se a uma viciosa invisibilidade concedida e consentida pelas versões oficiais do branco, europeu, masculino. Conforme esclarece a autora, “nas biografias elas não existem, ou se conhecemos seus nomes, desconhecemos o quanto sofreram ou choraram por eles [pelos homens históricos], e muito menos o que disseram”. Espraiando-se em uma Thereza que também é Christina, muitas mulheres em uma cantam o homem que valeu por muitos. Com uma espécie de contundência delicada, esta escrita também nos designa porque, nascendo mítica, se nos empresta para que reencontremos o sentido mágico e, por isso mesmo, verdadeiro da nossa humana jornada. Nadamos a vertigem.

Se não caminhamos sozinhos, se caminhar é conviver, abrir-se ao outro, no estabelecimento dos elos que nos libertam para a vida, “serpenteando a terra, à procura de seu destino”, então afirmamos: somos felizes aonde Marco Polo e a Princesa Azul nos levam. Somos felizes porque somos levados e não apenas levamos. Porque não somos apenas sujeitos de, mas sujeitos aos espaços, temporalidades e personas “por onde já nos perdemos”.

Perdemo-nos no livro de Thereza Christina Motta para encontrá-lo por sob os marcos e entre os polos de cada um de seus encontros: estará conosco mesmo depois de partirmos. Deixamo-nos ouvir aquilo que ele não escreveu nem escreve para nomearmos Mar em Silêncio esse infinito calar no hiato dos barulhos da onda. Reparemos: os poemas, em sua precisa contenção e, simultaneamente, em seu sutil vazar de imprecisas paragens, são barcos na amplitude branca do oceano-página. A autora dá luz à ribalta desse cenário. Ela valoriza o que, na folha, segue mudo, porque, imenso, o mundo que convoca. No primeiro bloco, aquosamente dramatúrgico, performático, o verbo. No segundo, distendido em prosa, quase aforismático. Em ambos os casos, sobressai o que, do barco, não se vê, mas se imagina ou se penetra quando dele saltamos: conchas e corais, pedras e polvos, algas e ostras, aprendizagem de abismos. Abandona-se a palavra em determinado ponto (no ponto que nunca é, de fato, final), para alcançarmos o que carece de fundo – o sagrado que nunca se desvela, somente se re-vela e, como véu, veste o amor que parece, em síntese, ser o personagem central dessas léguas e léguas por onde seguimos, graças à poiesis, felizes.

JARDIM EM CORO

Igor Fagundes

A começar pelo título, Todas as vozes cantam, o livro de estréia do poeta Leandro Jardim é todo marcado pela humildade de se assumir imbuído dos vários timbres auscultados no caminho: “há como te ser?”. Embora qualquer ser humano exista contaminado pelas obras que leu, pelos lugares que visitou, pelas gentes e coisas com as quais morreu e ressurge, poucas vezes esta caixa de ressonâncias é trazida à página de modo tão sincero, o que não significa, em Jardim, o empobrecimento do potencial velante da palavra a redundar no óbvio: o fato de que somos feitos por um trançado de “diálogos” com “tendência pra variedades” e “transformações por contextos”.

O que não é óbvio no mundo das subjetividades – mas comemorado em Leandro Jardim – é o esvaziamento desta retórica egocêntrica a partir da qual fomos educados a entender a poesia como expressão de um eu, de maneira que esse autocentramento ratificasse uma genialidade essencial, um apartamento das dimensões da interioridade e da exterioridade (“É coisa de dentro ou de fora?”), como se um não fosse gerador do outro e os contornos, previamente definidos, permanecessem estáticos. O poeta não quer “falar sozinho” e “espelhar somente a alma sua”.

Mediante o apelo recorrente à segunda pessoa do singular (“eu que não sou nada / apenas teu”), somos assim convocados a um mundo de referências e reverências pessoais, literárias, não fossem os catorze poemas dedicados a companheiros de vida, as homenagens a Fernando Pessoa e Manoel de Barros, bem como as reveladoras epígrafes de Drummond e Paulo Leminsky. De Pessoa certamente o encanta a polifonia heteronímica, a busca de uma poesia de pensamento, menos fanopaica do que logopaica, cujos momentos de quase prosaísmo parecem caros aos poemas distendidos de Jardim, à exceção dos instantes em que o jogo de palavras leminskiano o inspira ao comedimento, de polifonia agora rímica, ou, na pista de Barros, de poligrafia lingüística, a propor desconsertos e concertos sintático-semânticos. Tudo reunido por um drummondiano – porque universal – “sentimento do mundo”, cujas “mãos dadas” se transfiguram no “coro contemporâneo” deste rapsodo de 28 anos.

Em se tratando de estréia, devemos ser pacientes – o que não equivale a dizer menos exigentes – no julgamento artístico do livro. Só há sentido em exigir mais de alguém, e perseverar nessa exigência, se o criticado tem reais condições de se superar diuturnamente. Por isso, não podemos deixar de pôr em questão os diversos recursos de linguagem forçadamente utilizados por aquele que, sedento de explorar os ensejos lúcidos da palavra, deixa ainda à mostra os andaimes da casa construída. Sobretudo no que diz respeito ao uso das rimas, majoritariamente soantes (“embora porque é hora / porque é manhã agora / manhã doce com cheiro de amora”), não raro vertidas de maneira pouco fluente, levando-nos a suspeitar de alguma gratuidade ou falso ganho estilístico: “Tudo é métrica / Não simétrica, / mas rimétrica. / Essa é minha estética”.

Os melhores momentos de Todas as vozes cantam acontecem quando o poeta abre-se ao pensamento originário, liberto de qualquer a priori estético (“o que é bonito separa-se, é classificável?”), para além das armadilhas de parecer criativo graças a trocadilhos e jogos sonoros inócuos: “forte risco de ser em vão / (tentação). / É ao menos a tentativa, então”. Não que se proponha descartar a técnica em nome de um vale-tudo inconsistente (“Ah, poesia, minha seita! / Ah, papel, que tudo aceita!”), mas lembrar que o aparato técnico deve servir a uma arte e não esta vir a reboque daquele: “Sou poeta, e daí, / se a matéria prima / pela vida? // (E não pela rima)”.

Depois de Leandro Jardim expor os fluidos tantos que transpira em seu corpo poético e emotivo, é possível que nós, leitores por ele desejados (“preciso da opinião alheia”), nos convertamos em mais um destes suores capazes de alimentar o calor de seu trabalho e respiração. Afinal, “o ar que se expira também tem oxigênio” e, inspirados pelo do poeta, devolveríamos: “então lê aí e me diz o que achou”.