sexta-feira, 21 de novembro de 2008

CAMINHOS DE POE(A)MAR

Igor Fagundes

Não nos enganemos: escrever sobre (e sob) o escrever, cantar a força do próprio canto, tornar a poesia tema e tremor de todo um caminho – literário, para não dizer humano – só são possíveis porque, primeiro, já nos deixamos amar pelo amor, que tudo reúne e nos une à palavra, à Vida, desde sempre poética, a despeito da língua. O incomensurável amor que nos convoca à escrita, ao canto, à tremedeira, à caminhada. O caminhante amor que nos percorre como se dele fôssemos a travessia, de maneira que, abertos por ele, possamos ser amantes de seus pontos de partida e de chegada. Imediatamente amados no durante. Duradouramente amados pelo vigor do escreviver.

Ao lavrar sua ode ao verbo – como se em eco do apóstolo São João (in principium erat verbum...) – Merivaldo Pinheiro lança-nos nesta encruzilhada em que poemar e amar, antes de rimas, constituem sinônimos, ou ainda, propagadores sinfônicos um do outro. Fundadores, ao mesmo tempo que fundidos. Irmãos de um mesmo (e vário) verbo: criar. Primos de um único (e múltiplo) substantivo: o mar. Pois é no imenso oceano da Vida que deságuam e se cruzam os dois rios de Merivaldo (para não dizer, mais uma vez, rios de todos nós, navegantes e navegados), como se dessa mistura de águas doces e salgadas, com suas geografias díspares e na foz do verso congregadas, resultassem o sabor, o aroma e a textura de um livro lavado não apenas pelo par de veredas poemar-amar: os rios que se encontram nesta híbrida cartografia parauara-carioca (para não a chamar, em suma, universal) são também o Amazonas e o De Janeiro, na celebração dupla do Guajará e da Guanabara, do Ver o Peso e do Cristo Redentor, à margem dos quais a poesia tecerá seu corpo com a mesma devoção de quem tece a palafita na ribeira. A mesma percepção de quem, nas terras de asfalto, deixará entrevisto um beijo perdido nos muros das casas comuns, seus números, suas cores, suas telhas, suas formas. Tudo com uma tal devoração de Afrodite. Um tal apego de terra úmida. Um tal cio de cachorro na pedra, um tal amor – sempre ele, o amor – que nasceu para dar movimento ao pingo da chuva e estacionar no ar, por exemplo, o beija-flor. O beija-amor que é o poeta, o educador, o educamor Merivaldo, estacionado (em repouso) no máximo movimento (vôo) das palavras. E dos carros no vento. Dos dedos do sol nas sandálias das ruas.
Por isso, leitor, antes de pisar descalço o barro fértil destas folhas, primeiro lave bem os pés. Use o que usar. Esteja onde estiver. Livro maduro se pisa de pés limpos. E ouvidos atentos, como se à beira do labirinto mais íntimo houvesse, tal aqui, uma orelha a contornar os livros que se ouvem dentro de um livro, em escuta (e ausculta) de tantos silêncios. Tantos efeitos sem frases. Pois frases de efeito não amaduram uma orelha, uma leitura, um poema. Empobrecem-nos. O que os enriquece: o calar, que tem a ver com a gravidade da idade grávida de cada palavra. Sussurremos, em nós, alguma fecunda mudez e, no ouvido do poema, a quentura de nosso corpo. Também você um rio, leitor, a cruzar com os doces fluxos e fluidos de Merivaldo Pinheiro a fim de que, com ele, diga-lhe do seu amor pela vida / que é a própria palavra. E que possamos ao fim (e desde o início) tocar-nos pelo mar mediante o inesgotável sal destes versos (para não dizer oráculos): poemar de modo vário / é amar de modo pleno.

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

DO SAGRADO AMOR (OU: DE COMO APRENDER A MORRER)

DO SAGRADO AMOR (OU DE COMO APRENDER A MORRER)

Igor Fagundes

Enquanto idealizam o poeta como aquele que melhor sabe lidar com as palavras, “a poesia em chamas” de Renato Rezende, produzida pela combustão de um sui generis Noiva, queima-nos com a sinceridade de um contrário: “a língua destrói constantemente / [a possibilidade de se dizer]” e, por estarmos “todos aqui de forma oblíqua–estilhaços”, um poeta nunca diz nem dirá por completo sua definitiva incompletude. Todavia, a pobreza, imperfeição e parcialidade da palavra conferem-lhe sua surpreendente riqueza, unidade e perfeição, restando à poesia a incapacidade de explicar a própria estranheza que impele o escritor à luta, a um só tempo, contra e a favor da linguagem. Consoante Noiva anuncia-nos, sossegaria o poeta apenas no silêncio, ou seja, desistindo de ser aquilo que ele é: alguém que não se contenta com a mudez (embora dela se sustente) e escreve, mas para se desescrever, virulentamente reescrito pelo que devém, pondo “a mão na sua caixa de marimbondos” e suportando (e não) “seu próprio zumbir” – a assombrosa “zona de cegueira, de cansaço” que constituirá, ao revés, sua verdadeira alegria por ver o invisível; por extrair força de toda fadiga e gerar presença de toda ausência (e vice-versa).

Entre a iminência de responder a perguntas como “posso ser enquanto falo?” e a eminência de exclamar o descarte de qualquer resposta (“Desista de ser: seja”), o noivado e casamento deste livro – confessional na e da dessubstancialização de um eu em prol d’eus múltiplos, de um deus uno – será (im)precisamente a interseção “entre o Renato sendo e o que o assiste enquanto: é o Amor”. Mas amar, em Rezende, é render-se: “a pessoa viva deseja. A morta ama”. Render-se, em Rezende, se arrisca a rezar: “Deus, quer se casar comigo?”. Em Rezende, rezar é o risco, numa contemporânea e urbana experiência de ascese recolocada em questão.

A partir daí, e ao longo de um diário escrito por uma “humanidade que pulsa agora”, morte se desmistifica como negatividade e ponto final da travessia para figurar como o contínuo recomeço e mistificação da caminhada humana, isto é, como o abastecimento intensivo e extensivo de uma vida que, para inscrever-se maiúscula, necessita da diuturna dissolução (santificação) do corpo, de uma minimalização egóica que, fazendo(-se) nada (“Nada é onde palavra”), “fará tudo – e qualquer coisa (pois já não é)”. Na possibilidade de ver-se sempre distinto de como outrora (se) via e imediatamente indistinto do que não havia e passa a haver e a vê-lo, num mútuo preenchimento intertemporal, interespacial e interpessoal, o poeta com o amor troca as alianças: eis o corpo a se perder para ganhar outros. A tornar a obsessão pela morte a oração de seu matrimônio. Ela, o desafio de aprender a ocupar o inesgotável espaço que se abre dentro, o desatino (ou tino?) de ser todos e ninguém, porque “o homem não nasce, passa a vida nascendo” e, porque “tem gente que demora muito a nascer”, faz-se preciso entregar-se e desprover-se do “medo de ficar louco”. Desse limite entre o êxtase e algum esvaziamento depressivo, o poeta articula seu programa ontológico na apropriação recorrente da palavra “morte” (“a questão é que nunca me sei suficientemente morto”), associada sempre à aprendizagem do amor (“Agora que morri posso simplesmente amar. / Viver ficou muito mais fácil agora. Eu deveria ter morrido antes”).

Rompido – e ainda casto – nesse orgasmo não-físico (profano e sagrado na experiência do máximo de vida, que é, por segundos, e dentro dela mesma, morrer), o “coração” do poeta erige como seu “órgão sexual” e, ajoelhado neste intervalo entre presença e ausência, pede-lhe em casamento: a Deus, infinito hiato entre um passo e outro, um instante e outro, no qual vida e morte podem se distinguir e superlativamente se misturar, em nupcial “ambigüidade” que “não se resolve nunca”: “Quanto mais santo mais no mundo?”.

Nesse paradoxo se legitimam os anti-versos de Noiva, poema performático a desempenhar o próprio aniquilamento, por vezes irônico, de si (“Então tá, não sou poeta”) e do próprio sujeito fragmentado que nele se reconhece ao simultaneamente reconhecer-se – desconhecer-se – nas pessoas que o despersonalizam, (e)levando-o ao altar de uma impessoalidade cuja experiência, nunca de evasão, é a de sair para a Vida e carregar o caos e o cosmos inteiro consigo.