sexta-feira, 10 de abril de 2009

O XEQUE-MATE DE MARCUS VINICIUS QUIROGA

Quem acompanha a carreira literária do poeta Marcus Vinicius Quiroga há de saber os incontáveis motivos que levaram o júri do Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro, a conceder ao seu mais recente livro, O xadrez e as palavras, o segundo lugar na categoria “Poesia”. Apesar da quase invisibilidade no mercado editorial e nas prateleiras de livrarias, Quiroga vem publicando obras – todas elas premiadas – de grande unidade temática e estilística, marcadas por uma linguagem realmente substantiva e cônscia de suas forças (“não há o que a linguagem esconda / que ela própria não descubra”). Da soberba imagética à laboriosa estrofação, o verbo passeia, ainda, por uma polifonia rímica e variabilidade rítmica realizáveis por poucos em um mundo no qual o verso ainda não foi banido pelos modismos experimentais ou pelo vale-tudo gratuito de boa parte das produções mais recentes.

Desde a orelha, somos avisados de que O xadrez e as palavras consiste numa homenagem ao Barroco, “pérola irregular” em que se projeta o “homem em dúvidas, perguntas / e o sentimento de ser duplo”. Se, por um lado, o livro alega-se contemporâneo na forma (de “vocabulário avaro”, “parco de palavras”) com que recupera tal estilo de época, por outro, poderíamos cair no lugar comum de associar literatura contemporânea à prática intertextual, como se, em algum momento da História, alguma escrita não carregasse o peso da tradição, ainda que inconsciente e silenciosamente.

A despeito dos escritores que negam sua época e daqueles que aderem por completo a ela, reproduzindo-a, Marcus Vinicius Quiroga se faria contemporâneo por pertencer verdadeiramente ao seu tempo na medida em que, nas palavras do filósofo Giorgio Agamben, “não coincide perfeitamente com este nem se adéqua às suas pretensões e é por isso (...) inatual; mas, exatamente por isso, exatamente através desse desvio e desse anacronismo, ele é capaz, mais do que os outros, de perceber e apreender o seu tempo”.

Todavia, o pleno domínio dos recursos da língua (nos quais “as palavras (...) alternam lugares pela sintaxe / usam o vazio, a fresta da frase”), aliado a um conhecimento indiscutível da história literária (da qual o poeta retira seus poemas “gregorianos” e se apropria da “matéria da Inconfidência” num “Barroco tardio”), a fim de produzir o efeito estético desejado, não está livre das armadilhas do formalismo. Em diversos poetas, o tratamento retórico da linguagem pode se confundir com o tratamento poético (“a arte nada mais é que truque”, “a arte nada mais é que tramóia”), na medida em que persuade e envolve tanto emocional quanto racionalmente o leitor, provocando o belo agradável, no qual, mediante a quebra da sua resistência psíquica, permitirá que a linguagem concretize a finalidade e eficiência que precederam a elaboração: “as antíteses são sempre bem-vindas, / quando o poema se pretende tenso”; “para não se fixar o real é pêndulo / e as inversões se espalham indistintas”; “posta irregular tem gula / de inversões, interrupções, anacolutos”.

Por esse motivo, preferimos, distantes de qualquer redução de O xadrez e as palavras ao elogio puro da forma, celebrar a contemporaneidade das questões nele encorpadas e de que todas as épocas são filhas: “se o espelho não retrata, deforma” e “não responde, antes indaga” é porque a realidade dentro e fora de nós (entre nós) está sempre mudando. Porém, se apenas existisse a mudança contínua, irreversível, haveria sequer a continuidade e a sensação de que permanecemos, ou seja, a mudança coexiste necessariamente com alguma permanência. Permanecendo, a realidade muda: “nada permanece / além da peste e da morte”. Porque morremos desde a hora de nosso nascimento (“a morte navega no leme”), morrer é a permanência de toda vida, o originário dela e do tempo que, transformando-nos, insere-nos numa tensão de vida e morte em que ambas não se revezam: acontecem simultaneamente. E é a esse embaraço que a experiência do espelho leva o poeta (“nos põe de frente com o vazio”), na condição de “abismo [que] espera o navio [nós!] feito só de abismos”, em que “a imagem não reflete o mundo, que não o sabe, / nem o retém em suas margens”.

A presença de vida-e-morte, luz-e-breu nestas páginas, torna não mais cronologicamente – e, sim, ontologicamente – contemporânea a arquitetura de Marcus Vinicius Quiroga, porque agora se ocuparia nem tanto com a representação de uma estética passada (na qual classificar os poemas em estilos de época se tornaria o parâmetro causal, linear e meramente historiográfico de avaliá-la): muito mas com a apresentação de um instante e um lugar próprios, criados e reabastecidos a cada vez que o leitor a eles se abra.

É a voz de um dos seus versos quem ratifica “a morte como se fosse outro lado, a dobra / da vida”, desdizendo o que outrora o pensamento metafísico e alguns dos poemas “barrocos” de Quiroga chamam por “duplo”. Este ainda não é o “delírio”, mas ainda a “razão”, que tudo separa e divide, desmanchando a complexidade de uma teia em dicotomias. O delírio, o poético é o posto em rede, o entretecido, a dobra, a composição que gera unidade a partir do que se con-funde em trançados e vazios. Na poesia, a multiplicidade em meio à unidade dá-se graças à dobra ontológica em que estamos inseridos e nos possibilita a experiência simultânea de ser e não-ser, do discernível e do indiscernível, do um e do duplo, da terceira margem que sempre terá sido a primeira. Não à toa, comparecem no livro tantas passagens em referência à liminaridade que abre a experiência do desdobramento de si (“e se desdobra em duplo espectro / a repetir-se em variado leque”; “como se o mundo se desdobrasse mapa”; “se as analogias pedem um ‘como’, / é só desdobramento, exercício”; “o que é dito sempre se desdobra”; “o que se desdobra a partir da forma: / a boca que engole / o rabo”).

Em uma dicção que prima por clareza e precisão, Marcus Vinicius Quiroga pensa e celebra a obscuridade e a imprecisão (“se nestes versos digo e desdigo”). Quanto mais a vida parece esclarecer-se, mais o poeta apaga-nos as luzes (“nas orientações ambíguas, de modo que se contradiga / em toda e qualquer escrita”). Tentando desdobrar a existência e a poesia, dobra-as ainda mais (“Ah, mundo da escrita e dos enganos / em tudo dito diz-se o contrário”). A todo momento, a palavra defende “o mundo posto em desordem”, “as cartas embaralhadas”, uma vez que “o mundo não se parece / com números”, mas não cessa de elaborar um trabalho absolutamente organizado, ordenado e milimetricamente calculado (onde “o círculo dá a forma da leitura / para que não haja fresta e fuga”), com as mais diversas escansões, ainda que, no penúltimo bloco, “O poeta e a parábola”, opte por “versos sem rigor de métrica”, “sem compasso ou esquadro”, como se a tentar cumprir, vez por todas, o rompimento da circularidade da vida e de seu estilo, proposta desde o início, no primeiro poema do primeiro bloco da obra: “mas a arte espera que a roda se rompa / e o fio solto, num mover-se longo, / faça itinerário em desatino”.

Essas tantas incoerências, jamais geradoras de um problema para o livro, tornam-no ainda mais lúcido em sua loucura (ou louco em sua lucidez), coerente nas motivações de “um homem preso às suas angústias”. A grandiosidade da obra de Quiroga não está, sumariamente, na sua decisão e habilidade de dialogar com o barroco mediante todo o aparato retórico-formal de que dispõe, mas na questão de o autor, enquanto ser humano tomado pelo extraordinário, fazer-se poeta: um ser vigorosamente possuído e atual, de maneira que, em sua voz, Aleijadinho (“que ofertou seu corpo em partes / e foi se retorcendo para ser / ele a própria arte”) passe a ser cada um de nós e os artistas de todos os tempos: “se a arte também aleija / e se afasta de medidas, // (...) irregular se ergue, como quem se movimenta / em calçamento de pedra”.

Na atual literatura brasileira, desconhecemos quem coincida quantidade e qualidade de produção com a mesma voraz veracidade que Marcus Vinicius Quiroga. O xadrez e as palavras é o grande xeque-mate deste que já é um poeta, brasileiro e universal, do qual crítica e público podem realmente se orgulhar.

Um comentário:

Anônimo disse...

Conheço e gosto de Marcus Vinícius. Achei teus comentários super acurados. Vou ler com mais calma os outros que não conheço.