segunda-feira, 3 de novembro de 2008

DO SAGRADO AMOR (OU: DE COMO APRENDER A MORRER)

DO SAGRADO AMOR (OU DE COMO APRENDER A MORRER)

Igor Fagundes

Enquanto idealizam o poeta como aquele que melhor sabe lidar com as palavras, “a poesia em chamas” de Renato Rezende, produzida pela combustão de um sui generis Noiva, queima-nos com a sinceridade de um contrário: “a língua destrói constantemente / [a possibilidade de se dizer]” e, por estarmos “todos aqui de forma oblíqua–estilhaços”, um poeta nunca diz nem dirá por completo sua definitiva incompletude. Todavia, a pobreza, imperfeição e parcialidade da palavra conferem-lhe sua surpreendente riqueza, unidade e perfeição, restando à poesia a incapacidade de explicar a própria estranheza que impele o escritor à luta, a um só tempo, contra e a favor da linguagem. Consoante Noiva anuncia-nos, sossegaria o poeta apenas no silêncio, ou seja, desistindo de ser aquilo que ele é: alguém que não se contenta com a mudez (embora dela se sustente) e escreve, mas para se desescrever, virulentamente reescrito pelo que devém, pondo “a mão na sua caixa de marimbondos” e suportando (e não) “seu próprio zumbir” – a assombrosa “zona de cegueira, de cansaço” que constituirá, ao revés, sua verdadeira alegria por ver o invisível; por extrair força de toda fadiga e gerar presença de toda ausência (e vice-versa).

Entre a iminência de responder a perguntas como “posso ser enquanto falo?” e a eminência de exclamar o descarte de qualquer resposta (“Desista de ser: seja”), o noivado e casamento deste livro – confessional na e da dessubstancialização de um eu em prol d’eus múltiplos, de um deus uno – será (im)precisamente a interseção “entre o Renato sendo e o que o assiste enquanto: é o Amor”. Mas amar, em Rezende, é render-se: “a pessoa viva deseja. A morta ama”. Render-se, em Rezende, se arrisca a rezar: “Deus, quer se casar comigo?”. Em Rezende, rezar é o risco, numa contemporânea e urbana experiência de ascese recolocada em questão.

A partir daí, e ao longo de um diário escrito por uma “humanidade que pulsa agora”, morte se desmistifica como negatividade e ponto final da travessia para figurar como o contínuo recomeço e mistificação da caminhada humana, isto é, como o abastecimento intensivo e extensivo de uma vida que, para inscrever-se maiúscula, necessita da diuturna dissolução (santificação) do corpo, de uma minimalização egóica que, fazendo(-se) nada (“Nada é onde palavra”), “fará tudo – e qualquer coisa (pois já não é)”. Na possibilidade de ver-se sempre distinto de como outrora (se) via e imediatamente indistinto do que não havia e passa a haver e a vê-lo, num mútuo preenchimento intertemporal, interespacial e interpessoal, o poeta com o amor troca as alianças: eis o corpo a se perder para ganhar outros. A tornar a obsessão pela morte a oração de seu matrimônio. Ela, o desafio de aprender a ocupar o inesgotável espaço que se abre dentro, o desatino (ou tino?) de ser todos e ninguém, porque “o homem não nasce, passa a vida nascendo” e, porque “tem gente que demora muito a nascer”, faz-se preciso entregar-se e desprover-se do “medo de ficar louco”. Desse limite entre o êxtase e algum esvaziamento depressivo, o poeta articula seu programa ontológico na apropriação recorrente da palavra “morte” (“a questão é que nunca me sei suficientemente morto”), associada sempre à aprendizagem do amor (“Agora que morri posso simplesmente amar. / Viver ficou muito mais fácil agora. Eu deveria ter morrido antes”).

Rompido – e ainda casto – nesse orgasmo não-físico (profano e sagrado na experiência do máximo de vida, que é, por segundos, e dentro dela mesma, morrer), o “coração” do poeta erige como seu “órgão sexual” e, ajoelhado neste intervalo entre presença e ausência, pede-lhe em casamento: a Deus, infinito hiato entre um passo e outro, um instante e outro, no qual vida e morte podem se distinguir e superlativamente se misturar, em nupcial “ambigüidade” que “não se resolve nunca”: “Quanto mais santo mais no mundo?”.

Nesse paradoxo se legitimam os anti-versos de Noiva, poema performático a desempenhar o próprio aniquilamento, por vezes irônico, de si (“Então tá, não sou poeta”) e do próprio sujeito fragmentado que nele se reconhece ao simultaneamente reconhecer-se – desconhecer-se – nas pessoas que o despersonalizam, (e)levando-o ao altar de uma impessoalidade cuja experiência, nunca de evasão, é a de sair para a Vida e carregar o caos e o cosmos inteiro consigo.

Um comentário:

Anônimo disse...

A dialética do silêncio e da fala talvez tenha a ver com o que problematizas no seu pensamento. Acho que a insuficiência de palavras por parte do poeta o asfixia a tal ponto que o mesmo rompa os padrões frasais e diga aquilo que o sufoca, mesmo que o que o sufoca deixe de ser aquilo que era pra se tornar uma outra coisa qd a palavra é escrita ou oralizada. O silêncio é inesgotável fonte para o poeta, mas só o silêncio não basta, ele precisa da linguagem verbalizada pra dizer o mundo, porém qd diz o mundo, o mundo já é outro, o mundo já se confunde com o poeta, o poeta já aderiu ao mundo e o mundo nunca pode ser vislumbrado absolutamente nem pelo mais atento poeta. assim, o poeta precisa verbalizar o mundo sempre a fim de dar vazão a seu mundo interno que se confunde com o externo, verbalizando assim, o poeta vive e bebe da fonte silenciosa que se chaam vida que num ímpeto de poeta, pode virar qualquer coisa que não seja o poeta.