domingo, 19 de outubro de 2008

CRÍTICA ERETA PARA UMA POESIA ERETA

Crítica ereta para uma poesia ereta

Igor Fagundes

... de pau duro a vida vive dentro de mim.

Caio Meira, Entre outros.


À semelhança da Vida que, metendo-se em nós, intrometida em nosso corpo, nos convoca a um daqueles palavrões que exclamam seu impacto, contundência e fecundidade, diríamos: a poesia de Caio Meira é foda! É, literalmente, do caralho! Boa pra cacete! Como ela (e aqui emprego também o sentido, excitante, de comê-la), “escrevo essas palavras de pau duro, na esperança / de encorpá-las ou dar a elas carnadura e / alguma veia inflamada”. Devoro e fertilizo essa poesia na mesma desmedida em que me penetra, pois, em mim, sua glande nos descentra, quando se esperaria ser minha, aqui, a verve rija a engravidá-la.

Neste curto-circuito de falas (ou falos), precipita-se quem julga ser o quarto e ainda inédito poemário de Caio Meira mais um livro entre outros, apressadamente classificado sob o rótulo de literatura erótica ou pornô. Neste invulgar Entre outros, toda evocação priápica parece sublinhar uma escrita que, a todo momento, não se deixa arrefece, baixar a crista, rigorosa e vigorosa no irremediável ofício de adentrar aberturas, as mais estreitas em nós, as (quase) insondáveis, para, paradoxalmente, revirginá-las. Para além dos gêneros masculino ou feminino, o sexo é “da própria vida [que] / me mostre agora a surpresa contida na vida”. Será, ainda, de poesia com poesia, para além dos gêneros literários e onde a prosa e o verso se fundem numa “corda atada latejando / entre a noite e a manhã”. Entre a vida-poesia particular, finita, e outra, impessoal e ilimitada, a qual, na cópula, se torna a mesma – a alteridade que habita, interpela e leva nossa identidade à perda de si, na excentricidade orgasmática e trágica da “gota / que falta ao transbordamento”. No entre a vida-poesia mora, enamorada dos interstícios de uma intimidade que só se empreende na impossibilidade de estar só: realizável apenas no movimento de sua ultrapassagem.

Desde a estréia, com No oco da mão, Caio Meira parece disposto a dar certa continuidade às motivações lexicais, corporais e vitalistas de seus livros, como se a buscar sempre novas posições na cama em que, perdendo-se nas curvas da linguagem, se descobre beijado e abraçado pela carnadura do mundo. O poeta renuncia ao lirismo entendido como “extravasamento” de uma subjetividade ensimesmada para tornar-se e torná-la um lócus de núpcias entre os macro e microcorpos que se cruzam na cidade permeável da derme. Apalpando-se com poros e orifícios, a moldura em que consiste a idéia de sujeito se autonega e, no extrapolar desse quadro onde outrora supomos haver contornos, o verbo poético livra-se da mera masturbação estética para dar voz a diversos pares que nele se profanem ímpares. Se alguma “punheta” há em exercício, diz respeito somente à de uma inominável e gigante vida que nos toca e adensa, como se dela fôssemos o falo, de modo que não balancemos, frígidos, entre suas pernas e possamos, enfim, expelir a beleza que irá restituí-la. A líquida delicadeza do que, a princípio, se derramaria brutal se, no lugar de gratuitos, não fossem preciosos todos os “paus duros” e “bocetas” – de Pandora, de Eva e de quem quer que seja – em Caio Meira.

Esta, a imanência meditativa com a qual o discurso se ergue: manifestar mundo na latência do gozo, cuja iminência se ergue tanto a partir de uma força de dentro quanto de um fora que a força a concretizar-se, pois tudo o que a fluidez interna pretende, em seu vazar, é declarar-se definitivamente fluida e não-interior. Alheia à qualquer dicotomia entre dentro e fora, a corporeidade desta poética infla sua fenomenologia da ereção (título da segunda série de poemas do livro) à condição de lugar ontológico no qual homem e entorno se incluem de maneira irrestrita, estendendo-se a mim – a quem? – “irremediavelmente dissolvido, envolto em apêndices, bocas, línguas que me trilham”, “a agarrar o destino / pela garganta, com todas / aquelas desmedidas que dormiam entre / os influxos nervosos”. Eu – poderei dizer, ainda, eu? – a “ir além de minha / própria tragédia, para que minha música / vá além da música”.

Na assunção do extraordinário no ordinário, do sutil no supostamente grotesco, a obra de Caio Meira prescinde da virtuose das imagens, do malabarismo fônico, da fuga inócua à fantasia ou do apelo ao diáfano para conceber poesia. Contaminar seus versos com “barba por fazer”, “velhos gordos”, “sanduíches gelados”, “lanterna”, “tesoura”, “cartões de crédito”, “tatuagem na virilha”, “piercing”, “toneladas de metal, plástico e parafusos” nada tem de reprodução do senso-comum. Em Entre outros, punge a questão de que “a vida deve, afinal, defender a vida” e cabe à poesia “ir atrás dela, desentocá-la de seus refúgios”, “palmilhar os caminhos que desconheço, espreitando todo deslocamento / súbito”. Se, em dado momento, um verso nos diz que “tudo o que temos cabe numa caixa de sapatos”, o imperativo poético é “despertar / a parte invisível de tudo”, encontrar infinitas caixas dentro desta em que cabemos e não cabemos, para que, com “todas as dores de quem está reaprendendo / a caminhar”, a vida-poesia se adense no ímpeto de uma hora “cavernosa injetada de sangue”: “a vida é dura fora de mim, / a vida é doce dentro de mim, a vida dentro / e fora de mim, no meio do caminho da minha / vida, de pau duro a vida vive dentro de mim”.

Nenhum comentário: