POÉTICA DO PALAVRÃO:
CORPO E AMOR NA TERCEIRA MARGEM DA PALAVRA
(comunicação apresentada no debate "O corpo no pensamento poético", III Feira Poética da UFRJ - Faculdade de Dança/Fórum de Ciência e Cultura)
Igor Fagundes
“A corporeidade corresponde à sacralidade do profano.”
Diego Braga, A poética do mito.
“É a fala cotidiana que consiste num poema esquecido
e desgastado, que quase não mais ressoa.”
Martin Heidegger, A caminho da linguagem.
“Filhos da puta!”
Vida que pariu.
(1.) Uma palavra quer ganhar corpo. Um corpo quer ganhar: palavra. Para não se perder. Para se manter, se reter como corpo – isto que não se detém. Tudo o que se encorpa ama perder corpo é o aforisma de outrora agora. A plenitude de um corpo: deixar de sê-lo. Ultrapassar-se, ultrapassá-lo. Trair o que no corpo é corpo culminaria em sua e nossa maior fidelidade – a possibilidade de continuarmos a vir. A vir a ser corpo. A vir a ser. A ser. Simplesmente assim, no infinitivindo.
A palavra salvaguarda os corpos, mas não na condição de outro corpo. Do contrário, qual a palavra para este suposto corpo chamado palavra? Qual a palavra que nomearia esta “coisa” nomeadora de todas as coisas? Silêncio? Mas silêncio pode ser palavra?
A palavra silêncio: aquela que se nega – como palavra, como nomear de coisa – para ser o nome de nenhuma. Deixando de ser um nome, deixa que os nomes sejam. Silêncio, a palavra que morre, de amor por todas. Ainda sem corpo, nem palavra, o silêncio vibra em todas as palavras e corpos. Tudo o que vem à palavra ama silêncio. Uma palavra só se cumpre quando deixa de ser a promessa de onde ela sempre recomeça, isto é, quando se pronuncia, mas na medida em que, no seu anúncio, se renuncie e se resguarde naquilo que veio e vem a guardar, a anunciar – a cumprir. A palavra, um cumprimento, a saudação. Ela estende as mãos ao ser, dá-lhe boas-vindas.
O fim da palavra – o instante em que ela silencia – é, na verdade, o seu princípio. Cumprida, deixa que a realidade se conserve comprida, "larga, de não se poder ver a forma de outra beira". Mas, eclodindo da falta de si, este corpo, anônimo e silencioso, clama novamente por nome e voz. Novamente – mais uma vez, na vez que perdura, permanece. Novamente – numa vez nova, na que cuida da mudança. Um corpo, mais uma vez, permanecendo, pede palavra; numa vez nova, mudando, pede silêncio.
Não é assim quando batizamos nossos filhos, gerados no instante em que dois corpos (seus pais) se abriram e se abrem – se traem como corpos – para manterem-se (2.) fiéis ao amor que os une, isto é, para não se manterem, em nome do que se verte, transverte, vaza, extrapola? Em nome do que os mantém como isto que não se mantém. Em nome de um nome, uma vez que a palavra envolve de tal maneira o que vem à presença, que ela pode ser, ainda que fugidia, uma presença. Não nos apresentamos, assim, emersos e imersos do e no amor desses corpos pai e mãe que, perdendo-se, se ganham para nos ganhar? Para ganharmos a abertura que nos abriu e nos abre? Somos, como filhos, como ímpares, a perda e o ganho de um par de corpos que, em si mesmos, já são perda e ganho de milhões de outros, intracorpos, intercorpos, corpúsculos, microcorpos e/ou nem corpos – vazio entre os fios – na rede da qual nos estendemos enredo. Tudo o que ganha laço ama perder laços. Tudo o que se enlaça ama ser livre. Amar: ser livre, graças aos laços. Amar não é ser livre apesar dos laços. Laços de amor serão pesares? Em sua leveza, amar se conjuga no livre-aberto para todo laço. Enlaçados pela abertura, o amor só pesa se, trazendo-nos à terra, permitir-nos descer através dela (e ela subir-nos, florir em nós, por nós), roubando-nos seu e nosso limite. Abismando-nos, o amor só pesa se, pondo-nos os pés no chão, for amor-que-nasce-do-pé: amor de pé, dos pés-à-cabeça, de ponta-à-cabeça. De cabeça-para-baixo, amor-que-perde-chão. Amar: ganhar corpo (chão), perdendo-o. O aforisma de outrora agora ainda ressoa: Tudo o que funda ama perder fundamento. O que ama funda tudo o que fundamento perder. Perder fundamento ama tudo o que funda. Fundamento ama perder o que funda tudo. Daí não sabermos o que é o amor, senão sendo, dele, os amantes. Só nomeamos – e nomeamos amor – como resposta a um arrebatamento, o arrebatamento é a resposta, a um mútuo pertencimento, quando incorporamos aquilo a que já estamos incorporados.
Ao pôr-se sobre e sob nosso corpo, este que nos interpela impele-nos a parir da pele um: Caraca! (3.) Prenhe de mundo, a pele se preenche de caracas. Caraca, a corruptela de “craco”, artrópode que ama cascos de barcos. Caraca, a secreção nasal – corporal – ressequida. Caraca, o próprio falo, introjetado. Caraca exclama o estrangeiro que em nós se fez íntimo; a intimidade repleta de estranheza; a vida impessoal e indistinta acumulada – se distinguindo em pessoa – em nossas dobras. A realidade apegada, colada, encardida desenha mundo na derme e ele se pronuncia: Caraca! Ou, na força violadora de nossa castidade e tão fecundante: Cacete! À semelhança de um “caraca!”, o real se metendo em nós. Muito metido, intrometido, o real: rouba-nos a pureza, a virgindade, o intocado. Estamos nus, em verdade, quando completamente vestidos por ele. Vestir a realidade que nos veste – viver a experiência da linguagem.
(4.) Caralho! No palavrão, o cumprimento da palavra é o que dissemos da saudação a uma coisa em seu com(...)pri(...)men(...)to. Realmente sem comprimentos e sem cessar nunca de cumprir-se, a coisa ganha medida na voz e, como voz que se lhe empresta sentido, ela fica comprida – para além das medidas que jamais teve ou terá – logo que cumprido o silêncio. Pendente na linguagem, a realidade comprimida, rarefaz-se. Rara, faz-se. Contraída, relaxa – na voz. Espremidos na e pela realidade (posto que ela não cabe em nós e posto que propriamente a somos – propriamente somos –, não cabemos em nós; não temos cabimento!), sofremos o tranco, a cacetada, a secreção, a caraca, o craco em nosso barco e somos levados a agir. Levados, somos. Somos muito levados! Muito dados, muito oferecidos. No palavrão, a vida amarrada se liberta: Puta-vida-que-nos-pariu! Vida-puta-que-parimos!
(5.) Palavra que se preze, que se queira palavrão, há de ser filha da puta – desta vida que dá pra todo mundo. Moradora da esquina, decotada, entreaberta, seminua, vestida, travestida, travesti, sem gênero-coisa-nenhuma. Não façamos gênero com a realidade nua e crua. Não a generalizemos, embora palavra mui genérica. Palavra que anda por aí, por aqui, pela boca de Matilde, na língua do povo, palavra na ponta da língua, que vive da rua, quase morre indigente, (re)nascendo quase muda. Vida, realidade: palavras putas a nos deixar (tipo assim: não façamos tipo!) putos, mudos. Sem pa-la-vr-as. É pagar pra ver. Ainda que de graça, a vida – graciosa, engraçadinha, desgraçada – nos é muito cara. Façamos gracinhas e veremos. “Vai ter que rebolar, moço!”, ela avisa. E dan-ça-mos.
A dança da realidade, na qualidade de corpo, não se deixa contornar. Um corpo sem contorno não pode ser, sequer, corpo. Por esse motivo, não damos (a) conta da vida. Ela é foda, insaciável, quer sempre mais. Seguimos aquém do que poderíamos/poderemos vir a ser e a (não) dar conta. Perdemos a conta de quantas vezes fomos comidos por essa coisa de tamanho cum(com)primento. Pelo imensurável dote da realidade. Existir não é moleza não. A vida nos dá um duro danado: que grosseria, realidade, dá para ser mais fina?
Talvez, tudo isso não passe de um sarro, mas, de fato, palavrão é vida tirando um sarro. Palavra-vida nos sarrando, roçando, depois de termos sido chamados à “hora-do-vamo-vê” por uma realidade, entre quatro paredes, sem depois nem antes, nem paredes. O número “quatro” é coisa nossa, que somos tão quadradões. Na real, não há quadrados na natureza, quadriláteros perfeitos – sequer quadriláteros, linhas retas, lados iguais... Sequer lados... Sequer iguais... Embora isto nos pareça bastante concreto: ficar de quatro com a realidade. Os pés e os joelhos e as mãos sobre uma base. Se não tivermos uma base, a gente não aguenta! Sobre (sob) o amor, assim escrevemos: de pés no chão, o amor-não-dá-pé, este amor-que-perde-o-chão. O amor, nossa (perda de) base?! O palavrão, no fundo, tão amoroso...
Fodeu! Quem fodeu? Quem foi fodido? (6.) Na interjeição, nada sabemos sobre sujeições: quem age e quem é coagido. Sabemos nada. O que é nada, o que não é não pode agir, mas age (coage) como a possibilidade de toda ação. Nesse sentido, quem ou quê age e coage é ele, mais uma vez, numa vez nova, o silêncio. Em silêncio permanece o sujeito e o objeto no inter da interjeição: Fodeu! A gente nunca exclama: Fodi! Na variante “estamos fodidos”, o agente da passiva gramatical se esconde junto ao sujeito oculto. A gente está sempre fodido por. O susto se sustém a partir da falta de uma sustentação. Que se foda!
O silenciar dos sujeitos permite o urro, o grito, o gemido. Nessa pista, o palavrão, por sua vez, pediria permissão à palavra qualquer – à palavrinha, à palavra que só serve para – no incurso de atingir a nobreza do silêncio que o autorizou. Para ser permitido, portanto, o palavrão precisa permitir, por ele, a passagem do silêncio. Uma palavra no aumentativo, um palavra com “P” maiúsculo – uma palavra com “P” de pau duro, uma palavra com “P” de poesia – não pode consistir em qualquer palavra. Tem que ser foda, tem que ter pegada. O que, hoje, chamam por pegador não seria o garanhão? Assim somos angariados, pegos pela vida e pelo poético. Um bom poema se garante, porque pego pela pegada da vida, pega geral. Na cama do poema, é a realidade que, na penumbra, nos pega (nos come, come geral) entre lençóis. (7.) Em núpcias eternas, nós de quatro, com cara de: cuzão.
Na fala chula, grotesca (e grotta tem bastante a ver com buraco, com o cavernoso, com o abismal), cuzão é aquele que fica ou ficou sem saber o que fazer: “sei que nada sei, sabecoé?”. Nomeamos, no português ignorante (no português sábio), indivíduo cuzão o que se abriu e se abre para viver a ironia dessa maiêutica (ma... o quê?). Na aporia em que consiste ser cuzão, necessário coragem. Na hora H, na hora da verdade, nos borramos todos, somos muito cagões, fugimos, enquanto ela – o que nos foge, a verdade, que é fuga – caga pra gente!
Cuzão se oferta como imagem poética a dizer do quanto viver é, em seu ontológico arreganhar, oferta. Na procura por algo que se oferte ao que se oferta como procura de algo, a angústia (a denúncia da falta de algo diante do sem-qual, no intransitivo, só se procura). Cuzão diz daquele indivíduo que se entregou (“Ok, você venceu! Amarelei!”) e deixou-se atravessar. Merda! – alguma coisa aconteceu, escapando ao nosso controle. Não podemos prever a hora que vem a... Merda! E há ainda quem a deseje ao outro. Abundante, a merda aduba! A merda fertiliza. No teatro, os atores fertilizam-se uns aos outros, desejando merda a todos. Um desses que, numa cagada, conseguiram viver de arte, Íon, deparou com Sócrates e, diante do mestre de Platão, ficou com cara de: cuzão. Sócrates vivia dando ideia nas pessoas, mas sabia que os artistas estavam na merda e isso, divinamente, lhes fugia ao controle: “Não, Íon, tu não és um merda (um técnico). A merda é dos deuses e, sem que saibas, desfeito nela (entusiasmado), as palavras dos deuses te abundam e agora tornam fértil (adubam) minha terra!”. Daí que, no entusiasmo, fazer merda é fazer algo sem raciocinar.
Com fraldas, bebês, graças aos deuses, não raciocinam; contudo, pensam: neles a linguagem dá o ar de sua graça. No franzir da testa, no ensaiar da primeira rua, na hora do pacto com a mãe-terra antes mesmo do parto, experienciam vida e morte, movimento e repouso, se não cessam de (8.) nascer no agora que Já é! Demorô! Quando vem, o futuro se presenta e se despede na exclamação: “Fui!”. Este agora entre passado e futuro, é, na coincidência de ambos, nada entre passado e futuro. Sendo nada, o agora é sem limites, infinito. Tudo o que vem à presença ama se ausentar. Tudo o que já é demorô (partiu, brow? Fui! É nós!). Ausentando-nos, podemos demorar, morar(-nos) e sermos próprios porque presentes de e do amor. No colo da mãe, da terra-mãe, nosso choro, nossa gritaria, nosso esperneio realizam o palavrão que ainda não aprendemos. (9.) O corpo é o nosso grande palavrão.
Decerto, um palavrão grande não passa de uma redundância, se na palavra palavrão já a temos em aumentativo. Qual a grandeza da palavra? Dar nome ao que, antes, não o tinha e que, ganhando-o, pôde passar a ser, sem que tenha perdido a passagem, o passageiro e o próximo passo: sem que signifique deixar de vir a ser. O extenso-intenso-tenso-teso da palavra é gozar em nós. Lambuzados de caminhos, o orgasmo da palavra ereta é o próprio da palavra orgasmo: ao ganhar outro corpo, perder-se. (10.) Pequena morte, um palavrão é, afinal, grande vida. Palavra que precisa caber o impreciso da vida; que precisa ser infinita, porque precisamente imprecisa. Palavra de máxima extensão e de máxima profundidade, a fim de que nela caiba tudo que (a)parece (não) caber na gente. Vazia, a palavra – do vazio. Foda, essa palavra! Ela arrasa. Não passamos rasos por ela. A grande vida, fecundando, arrasa, nos mata, se morre, para ser outra e outros. Querendo respirar, a vida nos deixa sempre no vácuo.
Por tornarem público o que segue privado; por todo o seu strip-tease, os palavrões são temerosos, como se tementes a um deus – isto que se mostra, escondendo-se. (11.) Os palavrões apresentam o inapresentável como o inapresentável e, certamente por essa motivação, a maioria (senão a totalidade) deles abarca o que, na superfície do corpo, habitualmente, não se mostra: nádegas e genitália. Ambas só se expõem como liminaridades, espaços de passagem recuando em nome do avançar de um lugar, o de encontro, no qual a aparência – o que vem a aparecer, a se mostrar – se revela o essencial, a verdade (o desvelo que vive do próprio véu). Qualquer desencobrir do corpo na voz do palavrão só o faz para devolver ao encobrimento o que lhe é próprio. Por isso, o palavrão precisa chocar. E, antes de tudo, como palavra, ser chocado. “Eu choco as palavras”, declarou um divino escritor mineiro, que comia quieto, baldo de inventar “palavrões”. O palavrão – palavra do sexo, palavra que tem nádegas a declarar – revela, nonada, a intimidade, sem-lugar, do tamanho do mundo, tão estranha, como aquilo que justamente lhe confere a perpétua estranheza: o fato de que o íntimo só o será se assim se dispor na qualidade do que não se dispõe nem se expõe, não se declara, não se dá a ver porque, tal a linha do horizonte, sempre adiante, não é. O palavrão, pois, não desvenda, antes nos venda para vermos o sagrado, este foragido do corpo no corpo. Como assim?! O fora agindo no dentro?
Diante dessa palavra to dentro, to fora, penetrada, penetrante, vigorosa, quem deveria pedir permissão para pronunciar-se seria a palavra pequena, a palavra miúda, amolecida, impotente, infértil, brochada, brochante. Se o palavrão pede realmente alguma permissão para, a um só tempo, permitir silêncio (o sagrado), o faz sem pedir licença. Do contrário, não seria palavrão. Não pedir licença para acontecer faz do palavrão um acontecimento. Uma palavra nobre não pede licença! Somente a tudo e todos pede licença a palavra serva, a palavra servil, instrumental, utilitária. (12.) O palavrão, a palavra de grandeza “sai entrando”. Não bate à porta, não toca a campainha. O palavrão nada sabe de espera se, nele, a vida já o atendeu e o atende prontamente. Esta, a voragem da realidade: ela sai entrando. Sair entrando?! Se sai, não entra! Entrar é sair?! A realidade não nos diz “estou aqui”, como se, em algum momento, estivéssemos fora daqui e estivéssemos fora dela. Não poderíamos sequer julgar algo como irreal ou surreal, se não estivesse ele, o real, na raiz, no radical. Porém, na radicalidade, não há raiz para o real e daí se desdobra nossa busca angustiada por ele e por alguma. Quando, tão enraizados, percebemos que tais raízes não chegam à parte alguma, chegam a nenhuma parte, ou seja, não chegam, a gente grita: “Chega! Basta!”, como se pedíssemos para algum deus chegar e gritar e bastar. Mas (13.) o deus já nos havia e sempre terá chegado, ganhado voz, como interjeição, nesse arrebatamento. Ainda assim, quando não o bastante, soltamos um palavrão (soltamos o real, libertamo-lo de suas amarras, libertamos o deus de sua compreensão como raiz para ele chegar sem nunca ter partido na palavra vazia) e, ficamos, no popular, bolados, a saber, lançados, porque o originário de bola (de ballet, de bailar, de ball) é ballein (do grego): lançar. Em todo diálogo, um sentido se lança – se embola, se bola, alguém profere um: bolei! – na muleta interrogativa inscrita ao fim de uma afirmação: (14.) tá ligado? O brother quer se manter e nos manter ligados (irmãos). Manter a liga é ouvir o légo, palavrão grego primo do logos, a linguagem-mãe da vida. Filhos dela, somos todos brothers, não é, parceiro? De difícil tradução, o logos, porque ele é o próprio traduzir-se. Como corpo, o logos é não-sei-o-quê se diz. O palavrão, por excelência. Aquilo que se ouve como reunião, conjunção e conjugação. Por não vivermos em monólogo e, sim, em diálogo, em dinâmica conjugal – atestada pelo próprio sexo e sexualidade dos palavrões – insistimos: fodeu! Algo foi ligado. Algo fode, algo é fodido. A linguagem fala, e fala não-sei-o-quê até que arrisquemos saber o quê no sabor de uma língua. “Tamo” ligado, brow. “Os outro é” tudo alemão. O estrangeiro, o outro, o alemão, o que não fala a nossa língua. O da língua esquisita. Também, o que não entendemos é grego. A gente não se entende! Nós e os outros, gregos somos todos, e tudo-é-um. Tá tudo dominado.
Outra palavra grega para esta dinâmica de ligas, brothers, parceiros e corporeidades chama-se Eros. No pensamento de Orfeu, Eros – a força de reunião de todos os seres – teria nascido do Ovo Primordial (o Caos), engendrado pela Noite e cujas metades se teriam separado, dando origem à Terra e ao Céu. Eros leva as coisas a se juntarem, criando, entre cosmos e caos, vida. Porque Eros é sempre Eros de Thanatos, sempre Eros do Caos, (15.) a realidade está sempre de caos-caô com a nossa cara. "Deixa de caô, realidade!". Mas ela está sempre nos zoando, nos e se caotizando, nos e se bagunçando. "Na moral, tá-de-sacanagem com a nossa cara! Sem moral, descarada, a realidade vive de caô, da falta de uma cara, de vergonha na cara (a realidade não tem vergonha de não ter uma cara). Babacas (idiotés é o palavrão grego), quebramos a cara quando a realidade dá as caras: Tudo o que dá na cara ama quebrar a cara – uma tradução malcriada para o aforisma de outrora agora. E, assim, quereremos refazer o quebra-cabeça, deixar a cara do real certinha. Imaginá-lo todo arrumadinho, engomadinho. Vamos lá, babar seu ovo! Babar seu Ovo Primordial. Puxar seu saco; pois, afinal, a gente só puxa o saco do que está acima de nós (por isso, os deuses devem estar de saco cheio?!), muito embora o saco esteja embaixo de nós (os deuses, por baixo, por dentro...). Por cima e por baixo, além e aquém, dentro e fora, que porra de realidade é essa? Taumadzein é o palavrão grego para esta porrada. A gente é pela-saco dos gregos, deste estrangeiro que somos (deste papo de que somos e não somos). A gente quer ser filósofo, cientista, tirar os pêlos e a pele do real. Deixá-lo depilado, lisinho, bonitinho, organizado. Desnudo. A gente quer deixar o ovo do real à mostra, removendo-lhe... a pentelheira! (16.) Queremos saber do ovo de onde nos vem Eros. De onde nos vêm o amor, o corpo e a palavra. No fundo, a gente quer ser poeta: palavra de amor, encorpada.
(17.) Homens de palavrão são eles, os poetas. Homens que foram pegos e têm pegada. Homens que tão ligados, tá ligado? Nem filósofos, nem cientistas. Do real, poetas não rasgam seda: sabem que, se a rasgarem, perderão justamente o precioso. Não rasgar a seda, não analisar o real, não o dividir em partes, não o desmanchar, perder o seu próprio, embora rasgados por um deus (pela realidade). (18.) Assim os poetas não babam o ovo dos deuses. Eles são a baba do ovo. O que no gozo se goza. O que na vertência se verte. Porra! – o palavrão desse espasmo. Esse poeta é bom pra cacete. O que nos versos se esporra? O que na arte se esporra? Poiesis é a palavra grega de grandeza para o esporrar (criar) da vida a partir da morte. E vice-versa, pois o orgasmo é sempre esporro de morte a partir (e no partir) da vida. O esporrar do movimento a partir do repouso e vice-versa. Há que se ter o vice-versa. Há que se ter a reciprocidade. Do contrário, não haveria Eros. Não haveria erotismo. Nem palavra. Nem palavrão. Nem porra, porra!
(19.) Esta é a rapidinha que deve durar: na memória de que a vida é esse grande erotismo, essa grande interface, a poesia dá-se no entre, enquanto amor (corpo). Poiesis, o palavrão para essa transitividade do corpo. Assim, o poético, como a experiência do extraordinário no ordinário, é palavrão, se finalmente entendermos palavrão profanamente e entendermos o profano não como o inverso do sagrado, mas na qualidade daquilo que se dá em sua presença e/ou na sua direção[1]. Quando exclamamos um “Caralho!”, estamos, na verdade, sofrendo um: "Meu Deus! Oh, meu pai! Minha Nossa Senhora! Misericórdia!". Por esse motivo, o palavrão não é palavra que falte com o respeito. Palavrão não apenas exige respeito como vige em respeito ao que precede e ultrapassa toda palavra, morando nos hiatos, nas vírgulas, nas pausas, nas interrogações, exclamações e reticências; pontuando, sem fim, o pensamento.
Não à toa, (20.) o deus grego da linguagem, Hermes, o desbocado?[2]. Perdendo sua boca para que, em seu lugar, (se) abra a boca dos deuses e estes se pronunciem, Hermes é um bocado dos deuses. Deus da liga, tá ligado? Das encruzilhadas, do entre. No falo (na fala) à mostra de Hermes, o palavrão é, de fato, no corpo; o corpo-palavrão entrega-nos a porra da linguagem: os gametas da vida desde a incomensurabilidade da morte, na fluidez fertilizante de tudo o que se encorpa e ama se perder...
Vem à palavra e ama silêncio.
À presença no amor de ausentar-se.
O que dá na cara ama quebrar a cara.
Physis philei kriptestai.
Heráclito era brother bom de palavrões. Nomes como logos, aletheia, physis faziam parte do cotidiano de todos os gregos. Antes de incorporados por alguma filosofia, não correspondiam (e ainda não correspondem) a conceitos. Trazem consigo a força da palavra encorpada, e somente. E tanto. Homem de pouco, mas contundente dizer, o discreto de Éfeso tava ligado. No ser: no on (o grego e, putz!, o inglês?!). Mesmo ausente, ocupado, offline, Heráclito, já globalizado, se mantinha on e se conectava com o que o visitasse em seu simples casebre: “Entre, aqui também mora o extraordinário”.
[1] O palavrão latino profanus não se opõe ao sacer. A associação do profano ao sacrílego, ao pecaminoso é posterior e desencadeada pelo pensamento cristão. O próprio verbo profanare – consagrar alguma coisa aos deuses, oferecer aos deuses – já nos abre uma senda para compreender a profanação de que tratam a poesia e o palavrão. O profano diz do que está aberto ao sagrado. Estar em nome, em prol do fanus, do fantástico, do epifânico constitui o que ouvimos e libertamos em todo palavrão. O palavrão e a poesia (o palavrão que é poesia e assumindo também que a verdadeira poesia é sempre um palavrão) são a marca, a mácula, o sinal de oferta ao sagrado, a esse silêncio que entra em trânsito para ser tudo e se dizer palavra. Profanar, poetar, palavrear, então, se dariam como movimento em direção ao sagrado ou direcionados por ele, não para aniquilá-lo ou destruí-lo, mas para enaltecê-lo na referência do encontro.
[3] Na mitopoética nagô, de língua iorubá, Exu nomeia o orixá da linguagem. Exu, como o sagrado mito do humano, é o profano – o sagrado no e do próprio homem que mora na linguagem. Homem das ruas, homens das putas. Homens-deuses também de pau duro, a fazer com que a realidade perdure, em nós, intrometida. Exu, o esporrento, o gozador, arredio que sai por aí metendo o pau, dando esporro em geral, é o orixá responsável pela circulação do axé em nossas veias. O axé, palavra iorubana para o impulsionar de todo movimento, para o vigor do sangue circulante, para a combustão do corpo. Sim! Todo Exu é sangue-bom. Amor: Axé: Eros: Exu/Onilé: Hermes/Gaia.